O modelo desenvolvido com células-tronco pode ser útil para testar drogas que podem ou não cruzar a barreira hemato-encefálica e, assim, ter ação no cérebro.
Como uma estrutura muito importante e delicada do corpo, nosso cérebro está “blindado” das substâncias que circulam no organismo por uma barreira chamada barreira hemato-encefálica. Esta barreira, no entanto, também não é um “muro intransponível”, afinal certas moléculas precisam chegar às células cerebrais para manter seu funcionamento, como açúcares para fornecer energia, aminoácidos, vitaminas e muitas outras. Assim, na verdade, a barreira hemato-encefálica funciona mais como uma peneira, selecionando o que pode ou não entrar e sair do cérebro, portanto, agindo como um elemento fundamental para regular o microambiente neste órgão. Esta estrutura é formada por quatro tipos celulares: neurônios, células da glia, pericitos (um tipo de células-tronco mesenquimal) e células endoteliais (células que formam as paredes dos vasos sanguíneos).
E foi produzindo estes quatro tipos celulares a partir de células-tronco pluripotentes induzidas que cientistas da Universidade de Kyoto conseguiram recriar em laboratório esta barreira, misturando todos estas diferentes células e mantendo-as em condições específicas de cultivo. A primeira observação importante que os pesquisadores fizeram foi que as células endoteliais dentro desse sistema formaram conexões com as demais células chamadas de junções aderentes, que faz com que as células fiquem bem unidas, sem deixar espaços entre elas. Esta é uma das características mais importantes da barreira hemato-encefálica, e que confere a ela a propriedade de bloquear a entrada e saída de determinadas substâncias do cérebro.
O modelo recriado em laboratório pela equipe do Prof. Kohei Yamamizu pode ser muito importante para estudar os aspectos moleculares do desenvolvimento e funcionamento desta estrutura, o que pode ter impactos para o entendimento de doenças que estão associadas com problemas na barreira hemato-encefálica, como a doença de Alzheimer e de Parkinson. Mas talvez a aplicação mais relevante desse modelo seja para o teste de drogas. Como dito no início, a barreira seleciona o que pode entrar ou sair do cérebro e, portanto, nem toda substância que poderia ser usada como medicamento para tratar problemas no cérebro vai atingir seu alvo. Assim, por exemplo, se pesquisadores identificam uma droga que tem uma ação desejada em neurônios em cultura no laboratório, não necessariamente esta substância vai ter o mesmo efeito no organismo porque simplesmente ela pode não cruzar a barreira hemato-encefálica e chegar ao cérebro. Os pesquisadores já haviam criado algumas alternativas em laboratório para avaliar estas questões, porém nenhuma delas era satisfatória. Modelos da barreira desenvolvidos com células de outros animais não funcionam como a barreira hemato-encefálica humana. Outra tentativa foi usar pequenos fragmentos desse tecido extraídos de tumores cerebrais ou de pacientes com epilepsia, porém este material é limitado e também não exibiu em cultura junções tão fortes entre as células.
Já com a abordagem desenvolvida pelo grupo da Universidade de Kyoto, o material usado como base é ilimitado, pois se trata de células-tronco. O grupo comprovou a eficácia do modelo para o teste de permeabilidade de drogas da barreira hemato-encefálica testando 10 substâncias para as quais se conhece essa permeabilidade. De fato, eles observaram que a barreira hemato-encefálica recriada em laboratório apresentou boa permeabilidade ao propranolol, à cafeína e à carbamazepina (medicamento usado para tratar epilepsia), enquanto apresentou uma baixa permeabilidade à substância epinastina (usada para tratamento de conjuntivite) e cimetidina (droga que inibe a secreção gástrica). Assim, o uso desse modelo poderá propiciar a investigação prévia das propriedades de permeabilidade de uma substância. Dessa forma, pode-se evitar que sejam conduzidos testes clínicos para doenças do sistema nervoso central com substâncias que não atravessam a barreira hemato-encefálica, ou ao contrário, pode-se prever que uma droga testada para uma doença qualquer terá efeitos colaterais no sistema nervoso.
Referência:
Yamamizu K, Iwasaki M, Takakubo H, et al. In Vitro Modeling of Blood-Brain Barrier with Human iPSC-Derived Endothelial Cells, Pericytes, Neurons, and Astrocytes via Notch Signaling. Stem Cell
Reports. 2017 Mar 14;8(3):634-647.
Link de acesso:
http://www.cell.com/stem-cell-reports/fulltext/S2213-6711(17)30039-5?_returnURL=http%3A%2F%2Fli nkinghub.elsevier.com%2Fretrieve%2Fpii%2FS2213671117300395%3Fshowall%3Dtrue
Nota sobre o artigo
“No dia 22 de janeiro de 2018, a Universidade de Kyoto anunciou o resultado de uma investigação que concluiu que as imagens usadas no artigo referente a esse estudo foram falsificadas. A fraude foi atribuída ao autor do artigo, Kohei Yamamizu, e a Universidade pediu ao periódico Stem Cell Reports que publique uma retratação do artigo. O conselho responsável pelas investigações tentou recriar as figuras apresentadas no artigo a partir dos dados originais e descobriu que as conclusões apresentadas no artigo não são condizentes com os dados disponíveis. Assim, esse – e possivelmente outros trabalhos do autor – não têm resultados confiáveis e estão, no momento, desacreditados pela comunidade científica.”