A técnica poderia gerar quimeras de porco com órgãos formados por células-tronco humanas
Quimera é o nome de um monstro da mitologia grega que era formado por partes de um leão, uma cabra e uma serpente. A biologia pegou emprestada essa palavra para designar um organismo que é constituído por populações de células oriundas de indivíduos diferentes, mas da mesma espécie, ou de indivíduos de espécies diferentes. A ideia de gerar quimeras em laboratório, que pode parecer a princípio algo saído de um filme de ficção científica, para gerar um organismo mutante bizarro e que sai do controle de seu criador, na verdade visa aplicações com fundamentos bem nobres: as quimeras poderiam ser usadas para a produção de órgãos para transplantes, para teste de fármacos e como modelos para estudo de doenças humanas.
As tentativas de gerar organismos quiméricos não são nenhuma novidade na ciência, mas particularmente a geração de quimeras com células humanas sempre foi um grande desafio. Até então, os cientistas haviam tentado apenas fazer organismos quiméricos com células humanas usando camundongos como a espécie receptora. Estas tentativas tiveram sucesso limitado, provavelmente pelas grandes diferenças existentes entre estas espécies como aspectos do densenvolvimento embrionário e período de gestação, por exemplo.
Além disso, o tamanho extremamente diferente entre os organismos destas duas espécies não faz dessa uma opção muito útil para aplicações práticas para a saúde humana. Porém, em um estudo publicado recentemente na revista Cell, a equipe liderada pelo professor Dr. Juan Carlos Izpisua relata pela primeira vez o sucesso da incorporação de células humanas em embriões de porcos (que têm tamanho mais próximo ao do homem) e, o mais importante, o sucesso da sobrevivência destes embriões após implantação em útero.
Para isso, o grupo injetou células-tronco humanas induzidas à pluripotencia em embriões de porcos usando uma técnica a laser que danifica menos as células do embrião, aumentando suas chances de sobrevivência. Após um período inicial de desenvolvimento, ainda in vitro , os embriões contendo as células humanas foram implantados no útero das fêmeas de porcos. Após três ou quatro semanas da implantação, os embriões foram removidos e os cientistas puderam verificar a presença de células humanas num número significativo deles. Em alguns desses embriões, os cientistas verificaram que as células-tronco humanas inclusive começaram a se diferenciar para tipos celulares especializados.
No entanto, a maioria dos embriões em que as células-tronco humanas foram enxertadas de forma eficiente apresentou um retardo no crescimento, mostrando-se menores que o tamanho esperado para o estágio de desenvolvimento acessado, o que sugere que esse enxerto prejudica o desenvolvimento do animal receptor das células. Além disso, a porcentagem de células humanas encontradas nos embriões de porcos foi extremamente baixa, especialmente comparado às taxas que se consegue obter numa quimera rato-camundongo, por exemplo.
Ainda no mesmo trabalho, os cientistas mostraram que, com a técnica de CRISPR-Cas9, uma nova ferramenta de biologia molecular que permite a edição do genoma de maneira fácil e eficiente (leia mais aqui), é possível impedir a formação de um órgão específico no organismo receptor, fazendo com que este seja formado quase que totalmente pelas células enxertadas da outra espécie. Este experimento foi realizado com camundongos que tiveram genes importantes para a formação de pâncreas, coração ou olhos, alterados por CRISPR-Cas9, de forma a não desenvolverem tais órgãos, e cujos embriões foram enxertados com células de ratos. Os órgãos que não se desenvolveriam por conta da alteração genética realizada nas células dos camundongos se formaram graças às células dos ratos enxertadas.
Apesar de significativos, os resultados ainda estão longe de representar uma aplicação efetiva destas estratégias para uso em saúde humana. Com relação a uma possível aplicação para geração de órgãos para transplante, é importante ressaltar que ainda que se consiga fazer algo semelhante com células humanas e porcos, como realizado entre ratos e camundongos, o órgão formado pelas células humanas enxertadas ainda conteria células do organismo receptor (no caso, o porco), o que representaria um sério risco de induzir rejeição uma vez que o órgão fosse transplantado para um ser humano.
Também não se sabe ainda se de fato o organismo receptor se desenvolveria de forma adequada ao receber este enxerto de células-tronco humanas, possibilitando o desenvolvimento do órgão que se quer utilizar. Finalmente, a criação de quimeras com células humanas envolve aspectos éticos que ainda estão em profundo debate, como, por exemplo, a possibilidade de que as células humanas enxertadas no embrião do organismo hospedeiro possa contribuir para a formação do cérebro ou de tecido nervoso deste animal. Por outro lado, os cientistas afirmam que a mesma estratégia com CRISPR-Cas9 poderia ser utilizada para impedir que as células humanas contribuíssem para a formação do cérebro do animal receptor, contornando este problema.