Explicamos como o corpo identifica que um órgão é transplantado, e como células-tronco podem mudar o jogo
Você pode não perceber, mas batalhas mortais estão sendo travadas dentro de você nesse momento. Suas células de defesa estão patrulhando cada cantinho do seu corpo, checando quem entra e quem sai, e pedindo documentos. Elas pedem o crachá, carteira de identidade, dado biométrico, tudo que for preciso para ter certeza que todas as células dentro de você ou trabalham no seu corpo ou são visitantes autorizadas. Mas como que suas células imunes sabem se alguém está autorizado a estar ali ou não?
Elas têm várias maneiras. Uma delas, é pedir os “documentos” das células suspeitas. Quando você viaja para outro país, você normalmente precisa mostrar seu passaporte: ele diz quem você é, e de onde você vem. Quando a imigração checa a identidade, pode descobrir que o viajante é um criminoso, procurado pela polícia local. Ou ainda, perceber que a pessoa está tentando esconder sua verdadeira identidade usando um passaporte falso. É mais ou menos isso que algumas das suas células imunes passam o dia inteiro fazendo: parando o pessoal e pedindo o passaporte.
Só que, evidentemente, células não têm bolso nem andam por aí cheia de papeizinhos. O “passaporte” delas é o MHC, sigla em inglês para o complexo principal de histocompatibilidade (major histocompatibility complex). Em humanos, ele é chamado de HLA, o antígeno leucocitário humano (do inglês, human leukocyte antigen). Se você estiver se informando sobre transplante de órgãos e ouvir falar de “teste de compatibilidade de antígenos”, esses são os famosos antígenos: MHC ou HLA (são a mesma coisa). Esse é o passaporte que as células carregam. Todas células têm seu MHC, e todas elas precisam apresentar seu MHC sempre que for pedido pela polícia imunológica. O MHC realiza muitas funções, e uma delas é indicar a identidade e origem das células. E o seu MHC, muito provavelmente, é muito diferente do meu: existem vários genes envolvidos, cada gene tem várias formas, e mesmo essas formas podem ser modificadas. Isso é ao mesmo tempo muito bom e não tão bom assim.
É muito bom porque você está aí, vivão, graças a essa variedade toda de MHC. Afinal, esse sistema de identificação de células “criminosas” é muito bom, mas não é perfeito. Às vezes seu MHC nem vê um suspeito passando, às vezes ele até vê, mas acha que um passaporte falso é de verdade. Mas o interessante é que, como nem todo mundo tem o mesmo MHC, cada pessoa vai responder de um modo diferente.
Sabe aquela vez que todos os seus colegas pegaram um resfriado e você não? Uma das razões para isso pode ser porque seu MHC é diferente e foi mais ninja do que o dos seus colegas: a polícia deles não identificou o vírus, mas a sua, sim, e você escapou sem sintomas. Mas você também deve lembrar de uma vez que ninguém ficou doente, só você. Dessa vez, foi a sua polícia que não prestou atenção. Essa variedade toda no MHC, portanto, tem um lado muito bom. Mesmo que apareça uma doença muito grave, sempre vai ter uma proporção das pessoas que vai resistir. Na verdade, isso é tão importante que existem estudos indicando que mulheres preferem homens com MHC diferente do delas! Dessa maneira, seus filhos teriam um sistema imune mais robusto.
A parte não tão boa assim é que, às vezes, nós queremos que células estrangeiras sejam aceitas. É o caso dos transplantes. Graças à medicina moderna, nós podemos substituir um órgão inteiro que não está funcionando por um que funciona! Infelizmente, porém, nossa células não entendem nada disso. Elas vão até o órgão transplantado e pedem o passaporte. Assim que elas percebem que aquele órgão não tem autorização para estar ali (ou seja, o MHC dele é diferente), elas atacam, como se fosse uma ameaça, e o órgão é destruído. Por isso que é tão importante que a doação seja entre pessoas “compatíveis”.
Compatível é isso: um MHC muito parecido ou igual. Dessa forma, o órgão transplantado consegue passar por um habitante nativo daquele corpo. Até hoje, essa é a única maneira de realizar transplantes bem sucedidos. Ainda assim, não é 100% garantido que o corpo não vai acabar percebendo que aquele tecido é de fora e rejeitando o transplante. No entanto, quanto mais parecido o MHC, maiores as chances que o transplante será bem sucedido.
O MHC é produto de vários genes. E nossos genes, como você sabe, são herança de família. Por isso, seus parentes de primeiro grau (pai, mãe e irmãos) são as pessoas que provavelmente tem o MHC mais parecido com o seu. Parentes de segundo grau têm uma probabilidade um pouco menor, e aquela pessoa sentada do seu lado no metrô, baixíssima. Mas não houver nenhum doador familiar, começa a busca por essa rara pessoa compatível.
Para quem tem certas doenças do sangue, como leucemia ou anemia falciforme, por exemplo, a cura está na doação de medula óssea de alguém compatível (você pode ser esse alguém! Já se cadastrou como doador de medula óssea?). O transplante de medula é um transplante de células-tronco. Mais precisamente de células-tronco hematopoiéticas, ou seja, que dão origem a células do sangue e do sistema imune. As células-tronco hematopoiéticas têm passaporte e precisam apresentá-lo, além de outras características que tornam elas altamente visíveis para a polícia imune.
No momento, a maioria dos tratamentos com células-tronco aprovados para uso humano envolvem células hematopoiéticas. Por isso, é fundamental que as células sejam compatíveis, ou do próprio paciente. Essas células foram descobertas há décadas, e por isso já são usadas na prática clínica há muito tempo. Mas pode ser que isso esteja começando a mudar.
Existem outros tipos de células-tronco, com propriedades diferentes. Células-tronco mesenquimais são aquelas que dão origem aos tecidos sólidos do seu corpo (ou seja, tudo que não é sangue ou sistema imune). Essas células também exibem MHC, mas bem menos do que as células mesenquimais adultas, ou células-tronco hematopoiéticas: é como se elas andassem camufladas. Além disso, elas costumam inibir a função do sistema imune. Menos agentes da polícia imune chegam até essas células, e os que chegam não conseguem trabalhar direito. Por isso, essas células provocam uma resposta imune bem mais fraca, ou inexistente.
Muitas fontes de células-tronco mesenquimais foram descobertas recentemente, e ainda estão sendo caracterizadas. No entanto, como essas células formam vários órgãos diferentes, elas estão sendo investigadas no tratamento de diversas doenças. Diabetes, doença de Parkinson, doença cardíaca: no futuro, essas e outras doenças podem vir a ser tratadas com transplante de células-tronco mesenquimais saudáveis. É o que é melhor: talvez o doador possa ser qualquer indivíduo saudável, até aquela pessoa sentada do seu lado no metrô.