Microfluídica (2): Uso de células-tronco para a criação de órgãos em chips

Microfluídica (2): Uso de células-tronco para a criação de órgãos em chips

A microfluídica fornece as condições ideais para controlar de forma precisa a diferenciação de células-tronco e, por isso, estas células vêm sendo muito utilizadas no desenvolvimento de uma grande variedade de tecidos e órgãos em chips. Cérebro, coração e medula óssea são apenas algumas das estruturas já replicadas em microchips com o uso desta tecnologia, que permite também combinar diferentes órgãos com o objetivo de criar o “humano em um chip”.

Como vimos anteriormente aqui no blog, a microfluídica é uma ferramenta poderosa que envolve a utilização de dispositivos minúsculos e, com o cultivo de células vivas em microcanais, permite replicar as funções de tecidos e órgãos humanos em um microchip. Esta tecnologia é chamada “órgão em um chip” e tem sido bastante estudada para o uso na modelagem de doenças e no teste de medicamentos, prometendo ajudar a eliminar a necessidade de testes com animais na indústria farmacêutica.

A grande vantagem do uso da microfluídica para o cultivo de células em relação aos métodos de cultivo tradicionais é que esta tecnologia permite um controle preciso do microambiente celular. Este controle pode ser realizado tanto no que diz respeito à presença de biomoléculas no nicho celular, quanto à aplicação de estímulos mecânicos e até eletromagnéticos às células, com o objetivo de replicar da maneira mais fiel possível o ambiente fisiológico.

A possibilidade de se fazer este controle do microambiente celular se mostrou ideal para o uso de células-tronco no desenvolvimento de órgãos em chips, tornando possível direcionar de forma confiável e reprodutível sua diferenciação em tipos celulares específicos, conforme o órgão que se deseja replicar. Grande parte dos estudos utiliza células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs), que abrem a possibilidade de personalizar os dispositivos desenvolvidos para cada paciente.

Uma grande variedade de tecidos e órgãos já foram replicados pelos cientistas em microchips, incluindo pele, coração, cérebro, fígado, pulmão, medula óssea e até tumores. Neste artigo, reunimos alguns exemplos de estudos recentes que atuam no desenvolvimento de diferentes órgãos pela tecnologia de órgão em um chip, utilizando células-tronco.

Cérebro em um chip

O cérebro é o órgão mais sofisticado do corpo humano. A complexidade do tecido cerebral torna difícil a criação de modelos que repliquem suas funções. No entanto, a combinação da engenharia de tecidos neurais com a microfluídica tem permitido avanços significativos nesta área. O cérebro em um chip torna possível estudar como as doenças neurodegenerativas se desenvolvem e avaliar a toxicidade de medicamentos para células neurais. Vários dispositivos microfluídicos baseados em células-tronco vêm sendo usados no estudo de doenças como Alzheimer e Parkinson.

Pesquisadores coreanos utilizaram esferoides de células progenitoras neurais derivadas de células-tronco embrionárias de ratos para o estudo da doença de Alzheimer. Os esferóides foram cultivados em microchips, com circulação de um líquido que simulava o fluido cefalorraquidiano (também conhecido como fluido cérebro espinhal, que circula no espaço intracraniano e é responsável pela proteção mecânica das células cerebrais). A proteína beta-amilóide, cujo acúmulo é conhecido como uma das causas da doença de Alzheimer, por causar a morte de células neurais, foi então introduzida no sistema para se avaliar seu efeito sobre o micro-cérebro ali criado. Assim, os cientistas desenvolveram um modelo in vitro da doença de Alzheimer que permitirá futuramente testar novos medicamentos para esta doença.

Em um trabalho desenvolvido por pesquisadores de Luxemburgo e da Holanda, iPSCs foram diferenciadas em um tipo de neurônio responsável pelo desenvolvimento da doença de Parkinson (conhecido como neurônio dopaminérgico), utilizando-se um dispositivo microfluídico. O estudo gerou um modelo fisiologicamente realista e economicamente viável para estudos de medicamentos personalizados para o tratamento da doença de Parkinson.

Coração em um chip

As doenças cardiovasculares são a maior causa de mortes no mundo. O uso da microfluídica para reproduzir as funções cardíacas em um microchip e possibilitar o estudo de tratamentos para estas doenças é extremamente importante. Porém, replicar as funções do coração em um chip é um dos maiores desafios da tecnologia de órgão em um chip, já que este é um órgão extremamente dinâmico. Estímulos elétricos, mecânicos e bioquímicos são aplicados aos modelos de coração em um chip para direcionar a diferenciação de células-tronco a células típicas do coração (os cardiomiócitos) e simular os batimentos cardíacos. Estes modelos são usados para simular doenças e para examinar a resposta de células cardíacas a uma grande variedade de medicamentos.

Pesquisadores da Universidade de Harvard, em colaboração com outras instituições, desenvolveram um coração em um chip para estudar a síndrome de Barth – uma doença genética rara que afeta exclusivamente homens, enfraquecendo o músculo cardíaco. Neste estudo, iPSCs geneticamente modificadas foram diferenciadas a cardiomiócitos em um microchip. O modelo mostrou principalmente que a pulsação enfraquecida dos cardiomiócitos, característica da síndrome de Barth, é resultado da mutação de um gene específico, conhecido como TAZ, e contribui para o desenvolvimento de novas terapias para esta síndrome.

Medula óssea em um chip

A medula óssea é um tecido esponjoso, flexível e bastante complexo, responsável pela produção de sangue e células imunes no corpo. A medula óssea em um chip pode ser utilizada para estudar o efeito de vários agentes químicos e até mesmo radiação sobre este tecido, além de permitir o estudo de doenças que o afetam, como linfoma e leucemia.

Um grupo de pesquisadores americanos utilizou um dispositivo microfluídico para reproduzir a leucemia linfoide aguda, um dos tipos de câncer mais comuns em crianças. Células-tronco da medula óssea, osteoblastos e outras células humanas representativas de leucemia foram utilizadas no estudo, sendo cultivadas sobre uma matriz de colágeno dentro de um chip de microfluídica. Um medicamento comumente utilizado para quimioterapia deste tipo de câncer, a citabirina, foi introduzido no sistema e avaliou-se a resposta celular, que revelou uma baixa sensibilidade das células cancerígenas ao medicamento. Este modelo pode ser usado para ajudar no melhor entendimento deste tipo de leucemia e possivelmente na descoberta de novas terapias e tratamentos efetivos para o câncer.

Chips “multi-órgãos”

Sistemas que permitem interconectar diversos órgãos em chips também vem sendo desenvolvidos. Os chips individuais podem ser conectados entre si utilizando-se também dispositivos de microfluídica, que simulam a circulação sanguínea (sistema vascular em um chip). Estas conexões permitem o estudo do efeito de medicamentos sobre diversos órgãos simultaneamente.

O Instituto Nacional de Saúde americano (de sigla NIH, em inglês), por meio do Centro Nacional de Ciências Translacionais Avançadas (de sigla NCATS, em inglês) iniciou um programa para o desenvolvimento de Sistemas Microfisiológicos (SMFs), no qual o Brasil está inserido. Os SMFs são sistemas que integram diferentes órgãos em chips. No Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), um dos quatro laboratórios nacionais alocados no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas – SP, está sob desenvolvimento o projeto “Human-on-a-Chip”. A primeira etapa do projeto foi baseada no desenvolvimento de modelos de organóides humanos cultivados em dispositivos de microfluídica fabricados e vendidos pela empresa alemã TissUse. O grupo de pesquisas do LNBio trabalha para construir um dispositivo microfluídico povoado com organóides funcionais de intestino, fígado e rim, com o objetivo de utilizar esta plataforma para testes de medicamentos. A equipe utiliza iPSCs nos dispositivos e já produziu com sucesso organoides de intestino e fígado, estando o organóide de rim ainda em desenvolvimento.

Com os exemplos dados neste artigo, percebemos que os avanços recentes na fabricação de tecidos e órgãos pelo uso da tecnologia “órgão em um chip”, que combina microfluídica e células-tronco, levaram à considerável redução de esforços para obtenção de dispositivos eficientes para aplicação nos testes de medicamentos e modelagem de doenças. Estes dispositivos, capazes de integrar simultaneamente fatores bioquímicos e físicos para fornecer um microambiente adequado para estimulação da diferenciação celular de maneira definida e reprodutível, permitem a simulação das funções de um único órgão ou múltiplos órgãos formados a partir de células-tronco e representam uma solução promissora e transformadora no tratamento de diversos tipos de doenças, podendo ser usados em pesquisas fundamentais ou aplicadas.


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