No ano de 2016 aconteceu uma grave epidemia de vírus Zika no Brasil que levou ao aumento de casos de microcefalia em bebês de mulheres grávidas infectadas pelo vírus. Apesar de a região Centro-Oeste apresentar o maior número de casos de infecção por Zika, a maior quantidade de bebês com microcefalia estava presente na região Nordeste. Esse fato levou pesquisadores brasileiros a se perguntarem se poderia haver algum fator regional capaz de exacerbar os efeitos do vírus no Nordeste. Para investigar essa hipótese, eles realizaram experimentos com mini-cérebros e com camundongos. Os resultados são surpreendentes e preocupantes: substâncias presentes na água devido à falta de saneamento básico parecem ser o fator agravante da microcefalia causada pelo vírus Zika
O vírus Zika é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo que transmite a dengue e o chikungunya. Quando os seres humanos são infectados pelo vírus Zika, geralmente apresentam um quadro de febre baixa, dores de cabeça e dores no corpo. Entretanto, se a pessoa infectada estiver grávida, esse vírus pode causar problemas no desenvolvimento do feto, incluindo microcefalia (malformação congênita em que o crânio e o cérebro não se desenvolvem de maneira adequada). O primeiro grupo de pesquisadores que mostrou experimentalmente a relação entre a infecção pelo vírus Zika em mulheres grávidas e a microcefalia em seus bebês foram os cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liderados pelo professor Stevens Rehen. Esse estudo consistiu em infectar organoides cerebrais (também chamados de mini-cérebros) com o vírus Zika e analisar os efeitos dessa infecção. Os mini-cérebros são agregados celulares usados como modelo do desenvolvimento do sistema nervoso. O vírus matou as células progenitoras neurais, as quais estão amplamente presentes no encéfalo fetal em desenvolvimento, indicando que o vírus afeta diretamente essa estrutura.
Esse estudo foi realizado em 2016, ano em que estava acontecendo uma grave epidemia de vírus Zika no Brasil. Apesar de a região Centro-Oeste ter apresentado a maior quantidade de casos de infecção pelo vírus, foi a região Nordeste que apresentou mais casos de microcefalia em fetos associada ao patógeno. Essa discrepância fez com que os cientistas levantassem a hipótese da existência de um cofator ambiental regional capaz de agravar as consequências da infecção. Assim, uma equipe formada por pesquisadores do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), também liderada por Stevens Rehen, decidiu fazer experimentos para investigar essa hipótese.
Entre 2012 e 2017 aconteceu o maior período de seca da história do Nordeste brasileiro. Em condições de seca, a população mais pobre acaba recorrendo à água potável armazenada em caminhões-pipa e reservatórios com condições não ideais de higiene e que podem conter microrganismos. Além disso, quanto menos água, maior a concentração desses microrganismos e de toxinas liberadas por eles. Dados obtidos pelos pesquisadores a partir do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SisAgua) mostraram que, entre 2014 e 2018, havia uma grande incidência de cianobactérias em 30% da água consumida no Nordeste. Algumas dessas cianobactérias produzem uma neurotoxina denominada saxitoxina, que é altamente danosa ao sistema nervoso tanto de humanos como de outros animais.
Os pesquisadores decidiram então testar se a saxitoxina poderia exacerbar os efeitos danosos da infecção pelo vírus Zika no encéfalo. Para isso, fizeram um estudo com uma abordagem in vitro (mini-cérebros) e uma abordagem in vivo (camundongos). A abordagem in vitro consistiu em expor os organoides cerebrais concomitantemente ao vírus e à saxitoxina. A concentração de saxitoxina usada foi a mesma encontrada frequentemente em fontes de água não tratada durante as secas no Nordeste. Os mini-cérebros que foram infectados com vírus Zika juntamente com saxitoxina apresentaram uma morte celular 2,5 vezes maior do que os organoides cerebrais que foram infectados somente com o vírus. Os mini-cérebros que receberam somente saxitoxina não exibiram aumento de morte celular. Foi constatado também que a saxitoxina aumentou a replicação viral em 3,4 vezes.
Os resultados obtidos in vitro foram também confirmados in vivo: fêmeas de camundongos ingeriram água contaminada com saxitoxina durante uma semana antes de cruzarem e continuaram bebendo essa água durante a gestação. No dia 12 de gestação, as fêmeas foram contaminadas com o vírus Zika. Os filhotes das fêmeas com infecção viral e saxitoxina apresentaram uma erosão cortical significativamente maior do que os filhotes de fêmeas infectadas somente com o vírus e a quantidade de morte celular foi 2 vezes maior no primeiro grupo do que no segundo. Porém não houve aumento na quantidade viral – esse resultado pode ter acontecido porque talvez os camundongos consigam controlar melhor a replicação viral do que os organoides. É importante salientar que a quantidade de saxitoxina presente na água das fêmeas de camundongos corresponde a uma quantidade considerada segura para consumo humano e é normalmente encontrada na água potável do Nordeste.
Assim, os resultados desse estudo são evidências experimentais de que a saxitoxina potencializa a ação do vírus Zika e também ajudam a explicar a maior quantidade de casos de microcefalia relacionada ao vírus Zika no Nordeste. Além disso, esse estudo salienta a importância de promovermos uma rediscussão em relação aos níveis de toxinas considerados seguros na água que é disponibilizada para a população e sugere maiores investimentos em saneamento básico para que muitas doenças possam ser evitadas. Por fim, é interessante notarmos que as tecnologias relacionadas às células-tronco são importantes não somente num contexto de ciência e saúde, mas também podem ser fundamentais em discussões acerca de temas sociais, ambientais e políticos.
Referências
Agência Brasil – Pesquisadores mostram relação de água contaminada com zika vírus (30/03/2020): https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/pesquisadores-mostram-relacao-da-agua-contaminada-com-zika-virus
DW – Estudo liga falta de saneamento básico a efeitos do zika (13/03/2020): https://www.dw.com/pt-br/estudo-liga-falta-de-saneamento-b%C3%A1sico-a-efeitos-do-zika/a-52760630