A microfluídica envolve o uso de dispositivos minúsculos, mas promete avanços gigantes na área biomédica e para a indústria farmacêutica. Diversos estudos utilizam esta tecnologia para a criação de órgãos humanos em chips com o objetivo de utilizá-los para o teste de medicamentos e futuramente eliminar a necessidade de testes com animais.
Microfluídica é a ciência e tecnologia de sistemas capazes de processar quantidades muito pequenas de líquidos utilizando canais minúsculos, com dimensão comparável à de um fio de cabelo. A forma como os líquidos escoam nestes pequenos canais é diferente da convencional devido à reduzida escala do sistema, e é este comportamento fora do comum que chama a atenção dos cientistas e faz dos sistemas microfluídicos ferramentas promissoras para estudos em diversos campos do conhecimento, incluindo as pesquisas na área biomédica.
Embora o termo “microfluídica” possa parecer distante do nosso dia a dia, ele não é: exemplos de dispositivos microfluídicos muito utilizados são os testes de glicose (para diabéticos) e de gravidez (teste de farmácia). Antigamente, estes testes eram realizados apenas com equipamentos sofisticados em laboratórios, e o tempo de análise era bastante longo. Com a microfluídica, basta uma pequena quantidade de fluido biológico – sangue, no caso do teste de glicose e urina, no caso do teste de gravidez – e o resultado do teste é quase imediato. A facilidade com que estes testes podem ser realizados e a portabilidade dos dispositivos foram fundamentais para torná-los populares. O ideal é que mesmo os dispositivos de microfluídica desenvolvidos para aplicações complexas, como diagnóstico de doenças e testes de medicamentos, alcancem um dia este mesmo nível de acessibilidade. Levando isso em conta, os pesquisadores estão trabalhando para aprimorar os materiais utilizados na fabricação e o design dos chips para microfluídica.
Um caso bem-sucedido do desenvolvimento e aplicação de microchips simples e acessíveis é o dos dispositivos utilizados para o diagnóstico do vírus da imunodeficiência humana (HIV) resultantes de um trabalho realizado com colaborações de cientistas americanos, europeus e africanos. Neste estudo, mais de 70 amostras de sangue obtidas de um hospital em Ruanda, um país em desenvolvimento localizado no interior da África, foram analisadas. Um volume muito pequeno de sangue do paciente foi usado para o teste (um milésimo de mililitro) e o HIV foi diagnosticado com sucesso na maior parte dos pacientes. Mostrou-se com este estudo o potencial dos dispositivos obtidos pela técnica de microfluídica para substituir testes de laboratório convencionais e fazer contribuições importantes para a saúde em países em desenvolvimento.
A microfluídica fornece soluções transformadoras também para a indústria farmacêutica. Uma categoria de dispositivos microfluídicos que está sendo bastante estudada e aprimorada pelos pesquisadores é capaz de replicar as funções de órgãos humanos em um microchip, a chamada tecnologia de órgão em um chip (do inglês “organ-on-a-chip”). Esta tecnologia surgiu a partir da combinação de técnicas de microfabricação e da engenharia de tecidos e permite desenvolver dispositivos para testes de novos medicamentos.
A indústria farmacêutica gasta uma grande quantidade de recursos no desenvolvimento de novos medicamentos. Em média, 10 a 12 anos são necessários para que um medicamento seja aprovado para uso e 2,5 bilhões de dólares são gastos neste processo, sendo grande parte deste dinheiro investido na fase de testes clínicos. O uso da microfluídica como uma ferramenta capaz de fornecer resultados mais confiáveis em estágios pré-clínicos e reduzir o número de medicamentos não eficazes que passam para fases de testes mais avançadas é, portanto, muito bem-vindo.
Tradicionalmente, os testes de novos medicamentos são realizados em culturas celulares em 2D (normalmente em placas de plástico), no entanto, estes testes não conseguem predizer as funções de tecidos e atividades de medicamentos in vivo. Culturas 3D representam melhor a complexidade dos tecidos vivos, mas ainda apresentam certos problemas, como formato e tamanho variável dos organoides e também falta de estímulos mecânicos apropriados que simulem condições fisiológicas (como vimos anteriormente aqui no blog, estímulos mecânicos tem grande influência sobre o comportamento celular).
E é aí que a microfluídica faz toda a diferença: órgãos em chips são dispositivos microfluídicos para o cultivo de células vivas em microcanais, nos quais circula constantemente um líquido para fazer a perfusão das células (alimentação com oxigênio e nutrientes, simulando a circulação sanguínea), com o objetivo de reproduzir as funções fisiológicas de tecidos e órgãos. Estes sistemas podem incorporar forças físicas, como por exemplo para simular o movimento de respiração (no caso de pulmão em chip) e também permitem analisar respostas específicas de determinado órgão a células circulantes do sistema imune em reação a medicamentos introduzidos no sistema. É possível também estudar o perfil de distribuição de um medicamento utilizando-se chips com diversos compartimentos de células especializadas de diferentes órgãos, podendo-se assim predizer se certo medicamento se acumularia mais nos rins ou no fígado de um paciente, por exemplo. Indo mais além, é possível analisar o efeito de um medicamento destinado a um órgão específico sobre outro órgão: um medicamento desenvolvido para tratar uma doença cardíaca pode causar problemas nos rins? Com o sucesso desta tecnologia, a perspectiva é de que, a longo prazo, os testes com animais possam ser eliminados.
A tecnologia de órgão em um chip tem evoluído muito rápido e o reflexo disso é o número de empresas e start-ups que surgiram no ramo – um total de 28 ao longo de 7 anos, segundo um estudo de mercado publicado em 2017 por pesquisadores canadenses. Colaborações entre empresas farmacêuticas e universidades para o desenvolvimento de órgão em um chip para uso em testes de medicamentos tiveram início em 2013, com parceria firmada entre a farmacêutica multinacional AstraZeneca e o Instituto Wyss da Universidade de Harvard. No ano passado, a AstraZeneca assinou um acordo com a empresa Emulate (criada por pesquisadores do Instituto Wyss) para acelerar o desenvolvimento de órgãos em microchips, sendo pioneira na implementação desta tecnologia para testes de medicamentos na indústria.
O futuro da microfluídica e da tecnologia de órgão em um chip caminha rumo ao desenvolvimento do “paciente em um chip”. O uso de células-tronco, principalmente das iPSCs, abre a possibilidade de criar modelos de órgãos doentes com células específicas de determinado paciente e determinada doença, fornecendo assim um dispositivo totalmente personalizado. Além disso, recentes avanços nas tecnologias de edição de genes (por exemplo a CRISPR) permitem que várias doenças genéticas sejam derivadas a partir de uma única linhagem de células-tronco saudáveis, facilitando esta abordagem.
Na próxima semana teremos aqui no blog mais um texto com o tema “Microfluídica”, no qual vamos falar sobre os avanços científicos já alcançados com o uso de células-tronco em aplicações na tecnologia de órgão em um chip.
Referências:
Whitesides, G. The origins and the future of microfluidics. Nature 442 (2006) 368-373.
Bathia, S.N e Ingber, D.E. Microfluidic organs-on-chips. Nature Biotechnology 32 (2014) 760-772.
Zhang et al. Advances in organ-on-a-chip engineering. Nature Review Materials 3 (2018) 257-278.
Zhang, B. e Radisic, M. Organ-on-a-chip devices advance to market. Lab Chip 17 (2017) 2395-2420.
https://www.economist.com/science-and-technology/2015/06/13/towards-a-body-on-a-chip