Transformando células-tronco em neurônios em um sistema 3D, os chamados mini-cérebros, cientistas conseguem avaliar a migração neuronal em condições normais e patológicas
A formação do nosso cérebro durante o desenvolvimento embrionário é um processo extremamente complexo. Este processo envolve a diferenciação de células-tronco neuronais em células especializadas e sua migração e posicionamento dentro do órgão em desenvolvimento, para que ocorra a correta formação das diferentes regiões especializadas do cérebro e sua intercomunicação.
Nos últimos anos, os cientistas vêm desenvolvendo protocolos para recriar in vitro, a partir de células-tronco, diferentes órgãos do corpo humano, para que se possa estudar os processos fisiológicos envolvidos no desenvolvimento desses órgãos, bem como de que maneira estes processos estão alterados em alguma condição patológica. E, sem dúvida, mimetizar a formação de um órgão tão complexo quanto o cérebro em laboratório é algo desafiador, mas que certamente poderá trazer inúmeras contribuições para a área da saúde.
No trabalho desenvolvido pela equipe do pesquisador Sergiu Paşca, da Universidade de Standford, publicado em Maio deste ano na revista Nature, os cientistas deram mais um passo no sentido de mimetizar o complexo processo de desenvolvimento cerebral. Já há alguns anos, os cientistas vêm diferenciando células-tronco em neurônios em um sistema 3D (ou seja, em que as células são cultivadas em suspensão e não aderidas ao fundo de uma placa de cultivo), o que leva à formação de estruturas esferoidais que têm sido chamadas de mini-cérebros. No entanto, a maioria dos protocolos desenvolvidos até o momento criam estruturas que mimetizam apenas o córtex cerebral, a camada mais externa do cérebro, responsável pelos processamentos mais complexos de informação, como aqueles relacionados a memória, linguagem e consciência. A equipe do Dr. Sergiu Paşca, no entanto, diferenciou células-tronco pluripotentes induzidas separadamente em neurônios específicos de duas diferentes estruturas do cérebro: o córtex, que é repleto de neurônios excitatórios, e o subpalium, uma estrutura repleta de neurônios inibitórios. Depois, cultivaram estas duas estruturas juntas para tentar observar justamente a interação entre elas, já que durante o desenvolvimento, os neurônios inibitórios do subpallium migram para o córtex, integrando-se a este.
De fato, a equipe conseguiu observar este padrão migratório dos neurônios inibitórios do subpallium para o córtex, visualizando que os neurônios do subpallium emitem um prolongamento em direção ao córtex, como se estivesse procurando um alvo, e só depois, o corpo celular do neurônio também migra nessa mesma direção. Este padrão migratório já era conhecido por outros tipos de estudos e, portanto, a observação do grupo comprovou a validade deste modelo de mini-cérebros para mimetizar o desenvolvimento cerebral.
Além disso, o grupo do Dr. Paşca recriou essas estruturas a partir de células-tronco pluripotentes induzidas derivadas de células de pacientes com Síndrome de Timothy. A Síndrome de Timothy é uma doença causada por uma mutação em um gene que codifica um canal de cálcio importante para o funcionamento dos neurônios e de células do coração. Por isso, esta síndrome causa problemas cardíacos e também pode vir associada a um quadro de autismo. Os cientistas observaram que os neurônios inibitórios destes pacientes migram com uma maior frequência do subpallium para o córtex, porém percorrem uma distância menor. Este resultado é bastante interessante, pois outros trabalhos indicam que há um desbalanço entre neurônios inibitórios e excitatórios no cérebro de pacientes com autismo.
O grupo está tentando desenvolver protocolos para gerar neurônios específicos de outras áreas do cérebro, como hipocampo e estriado, para usar esta mesma estratégia de juntar as diferentes partes para formar mini-cérebros cada vez mais complexos. Estes estudos podem ajudar no entendimento não só de processos alterados em pacientes com autismo, como ilustrado neste trabalho, mas também em diversas outras doenças neurológicas.
Referência: Birey et al., Assembly of functionally integrated human forebrain spheroids. Nature. 2017; 545(7652):54-59.
https://www.nature.com/nature/journal/v545/n7652/full/nature22330.html#access