Células-tronco para tratar autismo: em que ponto estamos?

Células-tronco para tratar autismo: em que ponto estamos?

Células-tronco têm sido estudadas, nos últimos anos, em alguns ensaios clínicos como intervenção terapêutica para pacientes com autismo. Esses estudos indicam que a terapia é segura e mostram algumas melhoras na manifestação dos sintomas, mas são estudos pequenos e, em sua maior parte, sem grupo controle. Resultados recentes de um ensaio clínico controlado, randomizado e duplo-cego trazem mais evidências para os argumentos de que pode existir exagero nas expectativas em relação a esse tipo de abordagem.

Existe uma grande demanda para novas abordagens terapêuticas para o autismo ou Transtornos do Espectro Autista (TEA) e nós já abordamos esse assunto aqui no blog algumas vezes. O uso de células-tronco para pesquisar os mecanismos envolvidos e novos medicamentos é uma das aplicações mais promissoras nessa área.

Os ensaios clínicos que utilizam células-tronco como intervenção terapêutica são um pouco mais controversos no meio científico. Um dos estudos com maior impacto, realizado na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, teve seus resultados publicados em 2017, demonstrando segurança no uso das células-tronco do cordão umbilical e mostrando a melhora nos comportamentos sociais e repetitivos, no vocabulário e no contato visual. 

No entanto, além de o estudo não ter sido controlado, o raciocínio científico para essa abordagem é encarado com ceticismo por alguns pesquisadores, que consideram que as informações que temos sobre os mecanismos envolvidos no autismo e sobre os mecanismos de ação das terapias celulares são insuficientes para justificar a condução desses estudos. De acordo com Arnold Kriegstein, diretor do Centro de Medicina Regenerativa e Pesquisa com Células-Tronco da Universidade da Califórnia, em São Francisco, é prematuro conduzir ensaios clínicos como esse sem evidência de que a intervenção tem um efeito terapêutico compreendido. 

Mais recentemente, foram publicados os resultados de um estudo controlado, randomizado, duplo-cego, conduzido em Sacramento, nos Estados Unidos, que também utilizava como intervenção terapêutica as células-tronco do cordão umbilical. Esse desenho experimental fornece evidências a respeito da eficácia de uma abordagem terapêutica e não apenas da segurança, como o estudo realizado anteriormente na Universidade de Duke.

O fato de o estudo ser controlado permite comparar os efeitos do tratamento sob investigação com os efeitos observados em um grupo controle. Normalmente, se recomenda que o grupo controle receba o melhor tratamento disponível no momento do estudo pois, por razões éticas, é imprescindível garantir o melhor tratamento possível para os pacientes que participam de estudos clínicos. Em alguns casos, como no caso do ensaio clínico de Sacramento, pode ser possível administrar um placebo para o grupo controle. O placebo, nesse caso, foi uma solução salina, sem nenhuma ação terapêutica. 

Esse procedimento foi possível porque o desenho do estudo era cruzado, ou seja, o grupo que recebeu placebo na primeira intervenção do estudo recebeu também, posteriormente, em uma segunda intervenção, a terapia sob investigação. Outra vantagem do desenho experimental cruzado é permitir que o paciente seja controle dele mesmo, diminuindo a variabilidade dos resultados. Isso pode ser feito caso não ocorram efeitos de carry over, quando o efeito da primeira intervenção interfere nas observações referentes à segunda intervenção. Por outro lado, quando ocorre essa interferência, como foi o caso nesse estudo, não é possível fazer essa comparação, e a comparação é feita entre os dois grupos levando em consideração a primeira intervenção. 

Além de ser controlado, esse estudo foi duplo-cego: nem os pacientes e família nem o investigador principal sabiam se o paciente tinha recebido uma infusão do placebo ou da terapia sob investigação. Esse tipo de desenho é o padrão ouro para avaliar a eficácia de um tratamento, e exige uma série de cuidados. No caso desse experimento, por exemplo, foram usadas células-tronco que haviam sido criopreservadas (congeladas a temperaturas muito baixas). Esse procedimento envolve o uso de DMSO, uma substância que protege as células criopreservadas e tem cheiro de alho. Para evitar que o cheiro pudesse levar à identificação do tratamento, os pacientes consumiram óleo de alho e foram dispostos recipientes com DMSO na sala onde a infusão foi feita. 

Os resultados do estudo confirmaram que o uso de células-tronco do cordão umbilical para tratar autismo é seguro, mas não apresentaram evidências de que essa abordagem é eficaz. Não houve diferenças significativas entre o grupo controle e o grupo que recebeu o tratamento sob investigação. Para os autores do estudo, os resultados reforçam a importância de mais pesquisas com desenho experimental rigoroso nessa área. Para pesquisadores mais céticos, como Paul Knoeplfer, esse estudo traz mais argumentos para que as expectativas em relação ao uso de terapias com células-tronco para tratar autismo sejam diminuídas. 

Expectativas muito altas sobre o uso de terapias com células-tronco para tratar autismo podem levar pais a buscarem tratamentos que não são comprovados, pois muitas clínicas comercializam esse tipo de terapia mesmo sem aprovação das agências reguladoras. Além disso, alguns ensaios clínicos são conduzidos de maneira eticamente questionável, como o conduzido no Panamá e publicado em junho deste ano, que cobrava 7.200 dólares para o tratamento com células-tronco para autismo. 

Cabe lembrar que a ISSCR (International Society for Stem Cell Research – Sociedade Internacional para a Pesquisa com Células-Tronco, em tradução livre) elaborou um guia com recomendações práticas para a avaliação ética de ensaios clínicos envolvendo células-tronco, e um dos pontos a ser levado em consideração é que ensaios clínicos que exigem pagamento por parte dos pacientes para receber a intervenção são problemáticos. No Brasil, é proibido pela regulamentação vigente que os pacientes tenham qualquer despesa relacionada com o tratamento recebido em uma pesquisa clínica.

Referências

Chez M et al. Safety and Observations from a Placebo-Controlled, Crossover Study to Assess Use of Autologous Umbilical Cord Blood Stem Cells to Improve Symptoms in Children with Autism. Stem Cells Translational Medicine. 2018.

Furfaro H. Experts question rationale for stem cell trial for autism. Spectrum News. 2019.

ISSCR – Stem cell-based clinical trials: practical advice

Knoepfler P. Stem cells for autism: time to hit pause in 2018? The Niche. 2018.

Furfaro H. Controversial trial of cord blood therapy for autism forges ahead. Spectrum News. 2017. 

Subbaraman N. Experts balk at large trial of stem cells for autism. Spectrum News. 2014. 


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