Avanços recentes em pesquisas com células-tronco podem ser decisivos para o desenvolvimento de novos tratamentos para doenças do fígado
O fígado tem um funcionamento muito complexo, desempenhando centenas de funções importantes para o organismo, como a produção da bile, de proteínas para o plasma sanguíneo, de colesterol e proteínas transportadoras de gordura, metabolismo da glicose, regulação dos níveis sanguíneos de aminoácidos, remoção de substâncias tóxicas do sangue (como medicamentos e álcool), entre várias outras.
Doenças do fígado podem ser devastadoras e evoluem muitas vezes de forma silenciosa. Um dos sintomas mais conhecidos de problemas no fígado é a cor amarelada da pele e do branco dos olhos. Outros sintomas são dor e inchaço abdominal, coceira persistente na pele, náusea e perda de apetite. As principais causas são vírus, medicamentos, consumo excessivo de álcool, câncer e genética.
No mundo, aproximadamente dois milhões de pessoas morrem todos os anos em decorrência de doenças do fígado, principalmente cirrose e câncer de fígado que, juntas, correspondem a cerca de 3,5% do total de mortes registradas. Nos países ocidentais, a principal causa de cirrose é a doença do fígado gorduroso (causada ou não por consumo excessivo de álcool), ao passo que, na Ásia, a principal causa ainda é a hepatite B.
Quando as doenças do fígado estão em estágio mais avançado, o único tratamento disponível é o transplante. Embora tenha uma possibilidade razoável de sucesso (com uma média de 65-70% sobrevivendo cinco anos após o procedimento), a cirurgia de transplante de fígado é complicada, podendo durar cerca de 12 horas, tem um longo período de recuperação e, mais limitante do que isso: atualmente, apenas cerca de 10% da necessidade de transplante de órgãos consegue ser atendida. Nesse contexto, a busca por novos tratamentos é fundamental e o uso de células-tronco pode oferecer alternativas promissoras.
Já faz algum tempo que cientistas são capazes de diferenciar células-tronco em células do fígado em laboratório, e têm sido obtidos resultados no sentido de se desenvolver tratamentos regenerativos para o órgão. Recentemente, pesquisadores da Universidade de Edimburgo conseguiram diferenciar células-tronco embrionárias e células-tronco pluripotentes induzidas em hepatócitos e mantiveram essas células diferenciadas vivas em cultura por mais de um ano. As células foram combinadas com um poliéster biodegradável aprovado para uso em seres humanos e, então, implantadas sob a pele de camundongos com uma doença genética em que o fígado não consegue quebrar o aminoácido tirosina. Testes feitos no sangue dos animais que receberam o implante encontraram proteínas sintetizadas pelo fígado, esses animais também perderam menos peso e apresentaram menos sinais de danos no fígado. O fato de ter sido obtido um resultado funcional significativo com o implante subcutâneo, menos invasivo que um implante no abdômen, abre uma possibilidade terapêutica interessante.
Estímulos químicos são muito usados para diferenciar células-tronco em células especializadas mas, como explicamos no último texto do blog, estímulos mecânicos também podem ser usados para direcionar a diferenciação das células-tronco em células de interesse. Foi a estratégia utilizada por um grupo da Universidade Nacional de Cingapura, que criou um hidrogel que imita a rigidez e a rugosidade da superfície de fígados humanos saudáveis. Eles, então, cultivaram células epiteliais amnióticas (um tipo de célula-tronco do fluido amniótico de mulheres grávidas) no hidrogel e elas se diferenciaram em células do fígado maduras. Essa é, portanto, uma outra via que pode ser explorada para o desenvolvimento de novas terapias.
A necessidade de desenvolvimento de novos tratamentos para doenças do fígado e o impacto positivo que descobertas da medicina regenerativa nessa área podem trazer levaram um grupo da Universidade de Stanford a fundar a HepaTx, uma empresa que desenvolve pesquisas para criar tratamentos com células-tronco para doenças do fígado. O embasamento científico da empresa parte de um trabalho do Dr. Peltz e colaboradores em que células-tronco do tecido adiposo humano foram diferenciadas em células do fígado e transplantadas em camundongos, onde exerceram funções fisiológicas do órgão com sucesso. O grupo demonstra, nesse trabalho, que a técnica utilizada por eles tem escalabilidade para aplicações clínicas – agora, é necessário aperfeiçoar a metodologia para atender aos critérios regulatórios e fazer mais testes em animais para avaliar a segurança e eficácia do tratamento, antes que possam começar a ser realizados estudos clínicos em seres humanos.
Referências:
Asrani SK et al. Burden of liver diseases in the world. Journal of Hepatology. 2019.
Marcelin P & Kutala BK. Liver diseases: A major, neglected global public health problem requiring urgent actions and large-scale screening. Liver International. 2017.
Ministério da Saúde – Fígado
Jessie Szalay. Liver: Function, Failure & Disease. Live Science. 2018.
MedlinePlus – Liver Diseases
Rashidi H et al. 3D human liver tissue from pluripotent stem cells displays stable phenotype in vitro and supports compromised liver function in vivo. Archives of Toxicology. 2018.
Zhao C et al. Enchanced hepatic differentiation of human amniotic epithelial cells on polyethylene glycol-linked multiwalled carbon nanotube coated hydrogels. Tissue Engineering and Regenerative Medicine. 2018.
HepaTx – Revolutionary stem cell-based therapies for liver disease
Wilson, M. Developing Stem Cell Therapy Solutions for Liver Disease. Technology Networks. 2018.
Xu D et al. Enabling Autologous Human Liver Regeneration with Differentiated Adipocyte Stem Cells. Cell Transplantation. 2014.