Acredita-se que a ingestão de carne de animais silvestres tenha sido o ponto de origem da pandemia de COVID-19, assim como aconteceu em outras doenças como a gripe aviária e a gripe suína, originadas da ingestão de carne de animais de criação. Desta forma, torna-se evidente a necessidade de mudanças na maneira como nos alimentamos atualmente. Mas como seria possível mudar hábitos tão enraizados na sociedade? Uma alternativa bastante interessante é a ingestão de carne cultivada em laboratório, que além de ser produzida em um ambiente controlado, o que diminui significativamente a possibilidade de contaminação por vírus, possui ainda vários outros benefícios. Será que estamos prestes a viver uma revolução em nossa forma de alimentação e na maneira como interagimos com o meio ambiente?
A ideia mais aceita atualmente para explicar a origem da pandemia de COVID-19 é a transmissão do vírus de algum animal hospedeiro, como o morcego ou o pangolim, para o ser humano. Acredita-se que, durante a ingestão da carne desses animais, o vírus tenha conseguido se adaptar e migrar do hospedeiro animal para a espécie humana e que esse processo aconteceu em um mercado localizado em Wuhan, na China. Contudo, essa forma de transmissão não é um fenômeno inédito – o mesmo padrão já aconteceu em outras doenças como a gripe aviária e a gripe suína, por exemplo. Isso acontece porque a forma com que os animais, tanto selvagens quanto de criação, são mantidos e enjaulados cria uma situação propícia para o desenvolvimento de doenças infecciosas – altas densidades populacionais, níveis elevados de estresse, falta de saneamento e dietas não-naturais. Ao entrar em contato direto com esses animais, os caçadores e trabalhadores de matadouros são expostos constantemente à possibilidade de contraírem alguma patologia infecciosa. Uma forma de evitarmos esse cenário de transmissão e, consequentemente, o surgimento de novas doenças, que poderiam ser até mais graves que a COVID-19, é a mudança de nossos hábitos alimentares. Para isso seria necessária a eliminação, ou pelo menos uma redução significativa, no abate de animais para obtenção de carne.
Mas, se a maioria das pessoas no mundo alimentam-se de carne animal, seja por opção, costume ou necessidade, torna-se impossível eliminarmos a criação animal para consumo, certo? Bem, talvez fosse impossível até alguns anos atrás, porém atualmente há uma alternativa inovadora que está se tornando cada vez mais palpável e interessante para solucionar esse problema: a carne cultivada em laboratório. O princípio da produção desse tipo de carne consiste em replicar, em laboratório, o processo de desenvolvimento de tecido muscular que acontece no corpo do animal. Para isso, células-tronco musculares são extraídas de uma amostra de tecido animal, multiplicadas, e, por último, transformadas em células musculares, ou seja, carne (para mais detalhes, leia esse outro post publicado aqui no blog). Esse processo acontece sem qualquer tipo de manipulação genética, ou seja, sem a necessidade de interferência no genoma das células. Desta forma, pouquíssimos animais seriam necessários para obtenção das células iniciais. Além disso, não seria necessário o abate dos animais para essa finalidade. Seria necessária apenas uma coleta, por biópsia, por exemplo, de uma amostra de tecido desses animais. Para se ter uma ideia, uma amostra de tecido de uma vaca pode produzir carne suficiente para a produção de 80.000 “quarteirões com queijo” (o famoso hambúrguer do McDonalds) e, utilizando-se um biorreator do tamanho de uma geladeira, cerca de meia tonelada de carne e gordura podem ser obtidos em 14 dias. Ou seja, a quantidade de carne equivalente a duas vacas pode ser produzida em aproximadamente um mês (uma vaca leva de 12 a 18 meses para ser criada para o abate).
Além da significativa redução no sofrimento animal, a carne cultivada poderá trazer muitos outros benefícios como: redução do uso da terra para pastagem em até 99%, ou seja, o desmatamento seria consideravelmente reduzido; redução na emissão de gases relacionados ao efeito estufa; redução do uso de água em cerca de 90% e; redução de cerca de 40% no uso de energia.
Além de todos os problemas imediatos causados pela COVID-19 como: infecções de milhões de pessoas ao redor do mundo, colapso no sistema de saúde de muitos países e morte de uma quantidade expressiva de pessoas, outro problema de longo prazo é a crise econômica mundial. De acordo com o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (ONU), as consequências econômicas da pandemia podem fazer com que o número de pessoas que passam fome no mundo praticamente dobre. A estimativa é que o número aumente de 135 milhões para cerca de 260 milhões de pessoas com a vida ameaçada. Ou seja, a tecnologia inovadora de cultivo de carne em laboratório possui, além dos benefícios citados anteriormente, o potencial de reduzir significativamente o problema de falta de alimentos no mundo.
Mas qual é a situação atual da produção de carne cultivada? Quando poderemos comprar esse tipo de carne no mercado? Esse processo já está sendo estudado há alguns anos por muitas empresas como a Memphis Meats, Mosa Meat e SuperMeat, as quais buscam diversos aperfeiçoamentos como:
- Redução de custos – o primeiro hambúrguer, criado na Universidade de Maastrich, na Holanda, em 2013, custou cerca de 300 mil dólares e o objetivo é que o custo de cada hambúrguer seja de 10 dólares
- Formas de aumentar a escala de produção, uma vez que o objetivo é que essa carne seja ingerida em escala global
- Melhora de características como gosto e textura para que a carne de laboratório se torne cada vez mais indistinguível da carne obtida diretamente de animais – A produção de carne cultivada processada para fazer produtos como salsichas, hambúrgueres e nuggets é consideravelmente mais simples do que a produção de carne cultivada mais estruturada, como a presente em um bife, por exemplo. Mas, em março de 2020, foi publicado um estudo na revista Nature Food, em que os pesquisadores criaram uma estrutura 3D esponjosa comestível a partir de proteína de soja para fornecer suporte mecânico para que as células musculares animais organizem-se de forma que a textura fique extremamente semelhante à textura de um bife. Pessoas que experimentaram o produto disseram que a carne cultivada é deliciosa e que seria muito difícil diferenciar os dois tipos de carne.
A previsão é que a carne cultivada em laboratório comece a ser vendida nos mercados em 2021.
Os governos estão investindo muito dinheiro no desenvolvimento de terapias e vacinas contra a COVID-19, mas nada disso impedirá o surgimento da próxima pandemia, ou seja, precisamos atacar a raiz do problema. O caminho de mudança de hábitos tão enraizados na sociedade, como a forma de alimentação das pessoas, é bastante longo e demorado. Contudo, é hora de admitir que o sistema atual é ineficiente, perigoso e insustentável e se não for modificado e melhorado, as consequências podem ser bastante devastadoras. Dessa maneira, essa nova forma de produção de carne possui o potencial para revolucionar totalmente a forma como o ser humano interage com o meio ambiente atualmente e para diminuir a chance do surgimento de novas doenças e pandemias.
Referências
Modernizing Meat Production Will Help Us Avoid Pandemics (13/03/2020)
Lab-Grown Meat (14/09/2018)
Crise do coronavírus pode fazer fome quase dobrar no mundo este ano, aponta ONU (21/04/2020)
Lab-grown meat could be on store shelves by 2022 thanks to Future Meat Technologies (10/10/2019)
Cultured meat (04/2019)
Here Are 5 Things You Should Know About Lab-grown Meat (12/12/2018)