Pesquisadores utilizaram organoides renais e vasculares obtidos de células-tronco para testar um medicamento antiviral contra o vírus causador da COVID-19. Conhecido como APN01, o medicamento age na porta de entrada do novo coronavírus nas células e se mostrou capaz de inibir a infecção em estágio inicial. Liberado para estudo clínico de fase II em alguns países, o medicamento deverá ainda passar por outros testes para confirmação de sua segurança e eficácia.
Vimos no post anterior que diferentes abordagens envolvendo o uso de células-tronco estão sendo pesquisadas em todo o mundo com o objetivo de desenvolver tratamentos para a COVID-19 (do inglês, Coronavirus Disease 2019). Por exemplo, pequenas vesículas derivadas de células-tronco, denominadas exossomos, parecem ser capazes de reduzir inflamações graves que podem surgir nos pacientes e, por isso, estão sendo estudadas como uma potencial forma de auxílio ao controle dos danos causados pela doença.
No entanto, as células-tronco vêm desempenhando também outro importante papel no combate à doença: elas estão sendo usadas como plataformas para o teste de drogas antivirais potencialmente eficazes contra o SARS-CoV-2, ou “novo coronavírus”.
Como isso é feito? As células-tronco são usadas para gerar organoides, estruturas tridimensionais que se assemelham a tecidos específicos do corpo e que servem como modelos de órgãos naturais. Assim, esses “miniórgãos” são usados para testar novos medicamentos, gerando resultados fisiologicamente muito semelhantes aos que seriam obtidos em testes in vivo, ou seja, em organismos vivos (relembre aqui como papel das células-tronco vai muito além da terapia celular).
Um artigo científico publicado na revista Cell, fruto de uma colaboração entre cientistas canadenses, suecos, espanhóis e austríacos, mostrou que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 em tecidos humanos pode ser inibida por uma droga experimental conhecida como APN01, desenvolvida pela empresa austríaca Apeiron Biologics.
A droga, também chamada hrsACE2 (human recombinant soluble ACE2), já havia sido testada em estudos clínicos de fase I e II em pacientes com síndrome de deficiência respiratória aguda, e acaba de receber aprovações regulatórias para o tratamento de 200 pacientes com COVID-19 na Áustria, Alemanha e Dinamarca, em um estudo clínico de fase II.
Em trabalhos anteriores, a equipe do Dr. Josef Penninger – líder do estudo e diretor do Instituto de Ciências da Vida na Universidade da Columbia Britânica, no Canadá, e do Instituto de Biologia Molecular de Viena, na Áustria – identificou a proteína ACE2 (Angiotensin converting enzyme 2) como a principal receptora do vírus da SARS, uma doença respiratória viral reconhecida como uma ameaça global em 2003.
A ACE2 está localizada na membrana das células e, assim como para o vírus da síndrome respiratória que eclodiu no início dos anos 2000, funciona também como uma porta de entrada para o novo coronavírus. Essa proteína exerce uma função protetora nas células dos pulmões, o que explica os danos pulmonares severos apresentados por pacientes da COVID-19. Ademais, a ACE2 também está presente em células de outros órgãos do organismo, como coração, rins, vasos sanguíneos e intestinos, explicando os danos observados em múltiplos órgãos.
O APN01 consiste em uma forma solúvel da ACE2, capaz de “bloquear” o vírus e impedi-lo de entrar nas células. Primeiramente, os pesquisadores testaram o medicamento em culturas de células chamadas Vero E6 (linhagem de células de rins de primatas) e os resultados mostraram que ele promoveu uma inibição de entre 1.000 a 5.000 vezes da carga de coronavírus.
Em seguida, a equipe desenvolveu “réplicas” de vasos sanguíneos e de rins – organoides cultivados a partir de células-tronco humanas – e demonstrou que o vírus foi capaz de infectar e se duplicar nesses tecidos. Essa observação fornece informações importantes sobre o desenvolvimento da doença e se relaciona diretamente com o fato de casos graves de COVID-19 apresentarem falência múltipla de órgãos e evidências de dano cardiovascular. Por fim, os pesquisadores testaram o APN01 nesses organoides e observaram que, nesse caso, houve também uma redução da infecção por SARS-CoV-2, confirmando o potencial terapêutico do medicamento. Ressalta-se, no entanto, que a inibição do vírus não é completa e depende da dose de medicamento administrada. Isso pode ser devido ao fato de que pode haver outras proteínas receptoras, além da ACE2, ou mesmo outros mecanismos pelos quais os vírus podem entrar nas células.
Apesar de os resultados serem promissores, a equipe de cientistas destacou algumas limitações do estudo. Primeiro, o estudo se concentrou nos estágios iniciais da infecção, demonstrando que o hrsACE2 pode bloquear a entrada precoce do SARS-CoV-2 nas células hospedeiras. Assim, não se pode fazer previsões em relação ao efeito do hrsACE2 em estágios posteriores do processo de doença. Além disso, não foram estudados organoides pulmonares, e o pulmão é o principal órgão alvo da COVID-19. Por isso, são necessários estudos adicionais para esclarecer o efeito do hrsACE2 em estágios posteriores da infecção, tanto in vitro como in vivo.
Referências