Avanços no tratamento da fibrose cística podem ser obtidos com o uso de células-tronco na criação de modelos para a descoberta de novos medicamentos, em procedimentos de transplante celular e até em conjunto com técnicas de terapia gênica e bioengenharia de tecidos.
A fibrose cística é uma doença genética que tem cerca de mil novos casos diagnosticados todos os anos e acomete aproximadamente 70 mil pessoas no mundo todo. Ela é causada pela mutação (alteração) em um gene que afeta a secreção e absorção de íons em mucosas como as dos pulmões, intestinos, pâncreas, dutos biliares, glândulas sudoríparas e trato reprodutivo. Normalmente o muco produzido nessas regiões é útil para lubrificar os tecidos, mas com essa alteração ele se torna muito espesso, viscoso, e começa a causar problemas.
A manifestação dos sintomas depende do tipo de alteração que ocorre nesse gene (são mais de duas mil variações já identificadas), da ação de outros genes e de fatores ambientais. De modo geral, a acumulação de muco viscoso leva à infecção com bactérias oportunistas, inflamação e danos nos tecidos. As abordagens tradicionais, que já ajudaram a aumentar bastante a expectativa de vida dos pacientes, consistem em grande parte no tratamento das infecções pulmonares e no uso de enzimas pancreáticas.
Mais recentemente, foram desenvolvidos produtos personalizados que atuam diretamente na expressão ou na função da proteína codificada pelo gene alterado. Mas eles só funcionam para tipos específicos de alterações no gene. O Icavaftor, por exemplo, mostrou resultados clínicos positivos em pacientes que têm uma mutação chamada G551D (que é responsável por cerca de 2% dos casos de fibrose cística).
Células-tronco podem ajudar na busca por novos medicamentos
Nas fases iniciais da pesquisa, antes que comecem os estudos em seres humanos para avaliar um novo tratamento, milhares de moléculas são testadas em laboratório. Elas podem ser testadas, por exemplo, quanto aos seus efeitos em linhagens de células disponíveis comercialmente. Muitas vezes, moléculas que têm o efeito desejado nessas células não funcionam tão bem quando são usadas em tecidos humanos. O ideal, portanto, seria fazer essa investigação inicial diretamente em tecidos humanos de pacientes.
Obter esses tecidos e mantê-los em laboratório, no entanto, não é simples – por isso o interesse no desenvolvimento de técnicas envolvendo células-tronco para produzir modelos mais adequados para essa fase da pesquisa. Esse é um dos campos de estudo de um grupo de cientistas do Harvard Stem Cell Institute. Eles já conseguiram produzir células progenitoras pulmonares a partir de células-tronco pluripotentes induzidas humanas, e essas células progenitoras formaram epitélio respiratório quando implantadas em camundongos. Além da mutação G551D, o tecido apresentava também a mutação delta-508, que é responsável por cerca de 70% dos casos de fibrose cística. Dessa forma, eles puderam testar o medicamento já existente, que funciona em casos da mutação G551D, para comprovar a validade do modelo e começar a busca por uma molécula que tenha efeitos terapêuticos nos casos da mutação delta-508, mais frequente na população.
Com mais de duas mil mutações desse gene já identificadas e evidências de que outros genes influenciam a manifestação dos sintomas, fica claro que não é possível identificar uma molécula eficiente para o tratamento de todos os pacientes apenas com a condução de ensaios clínicos randomizados e que abordagens de medicina personalizada para testes in vitro são fundamentais. Ao usar células tronco pluripotentes induzidas de pacientes com fibrose cística, que têm toda a informação genética dos indivíduos, as chances de que sejam encontrados medicamentos eficazes para todos ficam maiores.
Terapias celulares e gênicas
Uma vantagem interessante das terapias celulares e gênicas é que elas funcionariam para todos os pacientes, independente do tipo de mutação apresentada.
Na terapia gênica, as células que têm a mutação que causa a fibrose cística seriam substituídas por células com uma cópia normal do gene. A ideia é coletar células-tronco adultas ou progenitoras de pacientes com fibrose cística, corrigir o gene e reintroduzir as células no organismo. As células transplantadas transmitiriam o gene saudável para as células filhas, de modo que as vias aéreas seriam repovoadas por células saudáveis.
Cientistas australianos mostraram recentemente que essa abordagem é possível em um estudo com camundongos. Um avanço importante do grupo foi que, para o transplante celular dar certo, o epitélio das vias aéreas teve sua camada superficial de células desestruturada para dar espaço para as novas células.
Outra solução de terapia gênica está sendo desenvolvida pela empresa irlandesa OmniSpirant, que usa exossomos de células-tronco para transportar uma cópia saudável do gene para as células das vias aéreas de maneira eficiente.
Além disso, células-tronco transplantadas poderiam atuar reparando o tecido lesionado e promovendo a função de células-tronco e progenitoras endógenas. Nesse sentido, aplicações terapêuticas com células-tronco mesenquimais são bastante estudadas pela sua capacidade de liberar fatores de sinalização importantes para esses efeitos. A maior parte desses estudos estão em fase pré-clínica, com o uso de modelos animais, mas essas células já foram usadas de maneira segura em ensaios clínicos para o tratamento de outras doenças pulmonares e em 2017 foi anunciado o primeiro ensaio clínico com células-tronco mesenquimais para fibrose cística.
Bioengenharia de tecidos
A possibilidade de criar um órgão novo, como o pulmão, para ser transplantado em pacientes com fibrose cística é uma área nova de pesquisa considerada promissora. Idealmente, os cientistas buscam usar células-tronco ou progenitoras autólogas (do próprio paciente) associadas a matrizes tridimensionais biológicas ou sintéticas capazes de fornecer estrutura adequada para a formação do órgão. O uso de células autólogas nesse caso é importante para evitar resposta do sistema imune e rejeição do transplante.
As células-tronco pluripotentes induzidas destacam-se para essa aplicação pela sua alta capacidade de diferenciação celular. As células-tronco mesenquimais da medula óssea e do tecido adiposo também são investigadas e alguns resultados sugerem que elas poderiam facilitar a repopulação de arcabouços de tecido descelularizado com outros tipos celulares como células progenitoras e pluripotentes induzidas.
Referências:
Berical A et al. Challenges facing airway epithelial cell-based therapy for cystic fibrosis. Frontiers in Pharmacology. 2019.
Conese M et al. The long and winding road: stem cells for cystic fibrosis. Expert Opinion on Biological Therapy. 2018.
Farrow N et al. Epithelial disruption: a new paradigm enabling human airway stem cell transplantation. Stem Cell Research & Therapy. 2018.
Health Europa. Developing a first-in-class regenerative gene therapy for cystic fibrosis
Medical Xpress. First stem cell study in the world for cystic fibrosis open
Harvard Stem Cell Institute. A major step toward a treatment for cystic fibrosis: HSCI researchers create lung surface tissue in a dish
Mou H et al. Generation of Multipotent Lung and Airway Progenitors from Mouse ESCs and Patient-Specific Cystic Fibrosis iPSCs. Cell Stem Cell. 2012.
Mou H et al. Personalized medicine for cystic fibrosis: Establishing human model systems. Pediatric Pumonology. 2015.