Um ano após anúncio do tratamento do HIV com transplante de células-tronco hematopoiéticas, o então anônimo “paciente de Londres” revelou sua identidade e foi considerado curado por seus médicos. O paciente, que além do HIV possuía um câncer agressivo no sangue, recebeu um transplante de medula óssea de um doador com uma mutação genética rara, que o torna imune ao vírus. O tratamento, porém, é agressivo e não pode ainda ser considerado uma forma universal de cura do HIV.
Em 5 de março de 2019, cientistas ingleses publicaram na revista Nature os resultados de um feito “quase” inédito. Uma década após o primeiro caso confirmado de uma pessoa infectada pelo HIV ter se livrado da doença, um homem conhecido até então apenas como o “paciente de Londres” repetia o ato – ele não mostrava sinais do vírus há quase 19 meses, conforme relatado pelos médicos na referida publicação. Ambos os pacientes foram submetidos a transplantes de medula óssea – ou de células-tronco hematopoiéticas – para o tratamento de um câncer no sangue, recebendo células-tronco de doadores com uma mutação genética rara, que impede o HIV de se estabelecer.
Entendendo o HIV
O HIV é o vírus que causa a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Desde que foi descoberto, nos anos 80, mais de 75 milhões de pessoas em todo o mundo foram infectadas pelo vírus. Hoje, quase 37 milhões de pessoas vivem com HIV. No Brasil, estima-se que quase 900 mil pessoas tenham o vírus.
A infecção pelo HIV quase sempre leva à AIDS, uma doença que costumava ser uma sentença de morte. Porém, este cenário mudou a partir de 1996, com a introdução de medicamentos anti-retrovirais (ARVs) para o HIV. Esses medicamentos impedem a replicação do HIV e permitem que uma pessoa infectada recupere um sistema imunológico funcional. Esses medicamentos são tão eficazes que hoje uma pessoa vivendo com HIV tem quase a mesma expectativa de vida de alguém não infectado. No entanto, os ARVs devem ser tomados todos os dias, apresentam vários efeitos colaterais e são caros. No Brasil, todas as pessoas diagnosticadas com HIV recebem tratamento gratuito pelo SUS. Atualmente, existem 21 medicamentos disponíveis.
Sendo assim, mesmo com a opção de tratamento com ARVs, que garante um aumento na sobrevida dos pacientes, uma cura funcional para o HIV – definida como quando alguém com HIV deixa de ser positivo para o vírus e não precisa tomar esses medicamentos – é imprescindível para o bem-estar dos pacientes e tem sido o objeto de diversos estudos. Com os resultados do tratamento do “paciente de Londres”, nos aproximamos um pouco mais da almejada cura. Apesar de os médicos deste paciente falarem em cura, vamos discutir a seguir porque este tipo de tratamento ainda não pode ser considerado a “cura universal”.
Os dois pacientes “curados”
O primeiro paciente a ser declarado curado, o americano Timothy Ray Brown – conhecido como o “paciente de Berlim” – foi diagnosticado com HIV em 1995, quando morava na cidade alemã. Alguns anos mais tarde, Brown descobriu que tinha também um tipo de câncer no sangue, chamado leucemia mieloide aguda, que começou a tratar com sessões de quimioterapia mas, eventualmente, precisou de um transplante de medula óssea. Ao constatar a disponibilidade de mais de duas centenas de doadores compatíveis com Brown, seu médico, Dr. Gero Huetter, teve a idéia de procurar um doador que tivesse uma mutação chamada CCR5 Delta 32 nas células CD4 (tipo de linfócito ou célula branca do sangue) tornando-os quase imunes ao HIV. CCR5 é uma proteína na superfície da célula CD4 que atua como porta de entrada para o vírus HIV na célula. Removendo essa entrada, as células CD4 não são infectadas e a pessoa fica imune ao HIV. O tratamento de Brown foi bastante agressivo e envolveu dois transplantes de células-tronco hematopoiéticas, realizados em 2007 e 2008. O paciente recebeu altas doses de radiação e quimioterapia para destruir seu sistema imunológico nativo, para que este pudesse ser substituído. O processo quase o matou, mas o vírus desapareceu de seu organismo, o que é comprovado com testes bastante sensíveis de detecção de HIV aos quais Brown ainda se submete periodicamente.
Ao longo dos anos, cientistas tentaram replicar o resultado alcançado por Brown realizando tratamentos similares em pacientes de HIV e câncer no sangue, mas não obtiveram sucesso. A agressividade do tratamento o torna uma possibilidade muito restrita para ser empregado efetivamente como uma forma de cura para o HIV.
O “paciente de Londres”, que agora saiu do anonimato revelando sua identidade ao jornal americano The New York Times – Adam Castillejo, 40 anos, de origem venezuelana e habitante de Londres, Inglaterra – foi o segundo a obter êxito no tratamento com células-tronco para o HIV.
Castillejo foi diagnosticado com infecção pelo HIV em 2003 e estava em terapia anti-retroviral desde 2012. Mais tarde naquele ano, ele foi diagnosticado com linfoma de Hodgkin avançado, um tipo de câncer no sangue bastante agressivo. Ele foi submetido a um transplante de células-tronco em 2016 de um doador com duas cópias de uma variante do gene CCR5, resistente à maioria das cepas do vírus HIV-1. Apenas cerca de 1% das pessoas de descendência européia têm duas cópias dessa mutação e são resistentes à infecção pelo HIV. A equipe descobriu que o vírus desapareceu completamente do sangue do paciente após o transplante. Após 16 meses, o paciente interrompeu a medicação com ARVs e, assim como Brown, passa por exames periódicos que confirmam a ausência do HIV em seu sistema deste então.
O Dr. Ravindra Gupta, responsável pelo tratamento de Castillejo, afirmou que o paciente recebeu um tratamento menos agressivo que Brown para se preparar para o transplante. Ele foi submetido a um regime consistindo de em quimioterapia combinado com um medicamento que tem como alvo células cancerosas, enquanto Brown recebeu radioterapia em todo o corpo, além de um medicamento para quimioterapia. Isso sugere que, para ter sucesso, os transplantes de células-tronco em pacientes com HIV não precisam necessariamente ser acompanhados por tratamentos agressivos que possam ter efeitos colaterais particularmente graves, conforme Gupta.
A cura da AIDS
Nesta semana, os médicos que trataram Castillejo publicaram um artigo na revista Lancet HIV no qual afirmam que “o paciente de Londres está em remissão do HIV-1 há 30 meses, sem vírus detectável e competente para replicação no sangue, fluido cerebroespinhal, tecido intestinal ou tecido linfoide […] Propomos que esses achados representem a cura do HIV-1.” (em tradução livre).
Ao jornal NY Times, Dr. Gupta afirmou: “todos acreditaram, depois do paciente de Berlim, que seria preciso ficar à beira da morte para curar o HIV, mas agora talvez não”.
Os transplantes são muito perigosos e não representam um tratamento realista no momento. Mas especialistas dizem que a nova “cura” pode abrir caminho para abordagens relacionadas, mas mais práticas, de modificação de células imunes.
Não há garantias de que a remissão de Castillejo persista, mas o Dr. Gupta disse que as indicações são boas, pois existem muitas semelhanças com a recuperação de Brown.
Brown disse que está torcendo por Castillejo: “Se algo aconteceu uma vez na medicina, pode acontecer novamente. Estou esperando companhia há muito tempo”. Castillejo, por sua vez, além de sua identidade revelou também seu maior desejo: ser “embaixador da esperança”.
Referências
UNAIDS: Global HIV & AIDS statistics – 2019 fact sheet
Ministério da Saúde: Brasil mais do que dobra o tempo de sobrevida de pessoas com AIDS (28/05/2019)
Nature: Second patient free of HIV after stem-cell therapy (05/03/2019)
Medical Express: Second HIV remission patient rekindles cure hope (05/03/2019)
What the ‘London patient’ means for HIV/AIDS research (05/03/2019)
A cure for HIV? Feasible but not yet realized (07/03/2019)
Second HIV patient reportedly ‘cured’ (09/03/2020)
The New York Times: The “London Patient”, cured of H.I.V., reveals his identity (09/03/2020)