Em impressionante feito científico, tratamento experimental com células-tronco para epidermólise bolhosa regenera a quase totalidade da pele de criança
Hassan nasceu com epidermólise bolhosa, uma doença genética rara que torna a pele tão frágil que ela se rompe facilmente. O menino apresentava um caso tão severo da doença que chegou a ter mais de 80% do corpo exposto. Sem cura ou opções de tratamento, casos como o de Hassan são fatais nos primeiros anos de vida. No entanto, Hassan, hoje com 9 anos, não apenas sobreviveu à doença como leva uma vida absolutamente normal. Tudo isso graças à um laboratório em Modena, Itália, que desenvolveu um tratamento experimental para epidermólise bolhosa combinando células-tronco e terapia gênica.
A epidermólise bolhosa (EB) é causada por mutações genéticas que prejudicam a resistência da pele mesmo às menores lesões. Um dos genes associados à EB é o gene laminina beta 3 (LAMB3), que é importante para o ancoramento da epiderme (a camada mais externa da pele) à derme (a camada imediatamente inferior). Se esse gene não funciona corretamente, a pele perde elasticidade e resistência mecânica, e qualquer trauma pode levar ao seu descolamento, gerando ferimentos extensos sujeitos a infecções.
A equipe de Michele de Luca, na Itália, é pioneira na busca de tratamentos para EB envolvendo células-tronco e terapia gênica. Na juventude, de Luca aprendeu nos EUA a cultivar células-tronco cutâneas para produzir pequenas “folhas” de pele para usar como enxertos em vítimas de queimadura. De volta à Itália, ele e sua equipe desenvolveram métodos para isolar células-tronco da pele e corrigi-las geneticamente a fim de produzir “folhas” de pele saudável em laboratório.
Em 2006, o grupo tratou o primeiro paciente com epidermólise bolhosa utilizando terapia gênica para corrigir o gene LAMB3. Esse paciente foi acompanhado por quase uma década a fim de avaliar se a terapia realmente era segura a longo prazo. O tratamento foi bem sucedido, mas ainda era experimental: um único paciente havia sido tratado, e ele apresentava apenas um caso leve de EB. No entanto, sem mais nenhuma alternativa, os médicos de Hassan ligaram para o laboratório italiano: seria possível aplicar o tratamento experimental no menino?
Esse tipo de procedimento se enquadra no chamado “uso compassivo”. Nesses casos, o fabricante do tratamento e agências regulatórias disponibilizam o uso de terapias experimentais (ou seja, que ainda não foram aprovadas para uso em humanos) para pacientes em estado terminal que não tenham outra opção de tratamento. O grupo de Modena e as agências regulatórias alemãs aceitaram tratar Hassan, especificamente, dada a gravidade do caso do menino e considerando que havia evidências de que o tratamento era eficaz e seguro.
Ainda assim, o desafio do laboratório italiano era extraordinário. Seria necessário o isolamento, correção genética, cultivo e enxerto de uma grande extensão de pele. Para isso, os médicos de Hassan, na Alemanha, enviaram uma biópsia de 4 cm2 de uma parte íntegra da pele do menino para o laboratório italiano. Lá, as células da epiderme foram isoladas e um retrovírus foi usado para corrigir a mutação do gene LAMB3. As células corrigidas foram cultivadas para formar “folhas” de pele saudável que foram enxertadas no menino. No total, foi gerado 0,85 m2 de pele, para cobrir a quase totalidade do corpo do menino. Se os desafios eram impressionantes, o sucesso também foi: hoje Hassan brinca, corre e joga futebol como as outras crianças.
É importante ressaltar que o uso dessa terapia ainda é experimental, e que por isso ela não está livremente disponível aos pacientes com a doença. Mais estudos, com mais pacientes, são necessários para garantir a segurança e eficácia a longo prazo da terapia. Além disso, a EB pode ser causada por pelo menos 18 genes diferentes, e não se sabe se a mesma metodologia vai ser efetiva para mutações em outros genes além do LAMB3. Ainda assim, o tratamento de Hassan é um exemplo impressionante do que pode ser alcançado quando pesquisa básica e prática clínica se unem por um objetivo comum, e alimenta as esperanças de quem sofre com a epidermólise bolhosa e outras doenças genéticas ainda sem cura.
Fontes:
❏ Hirsch, T. et al. Nature 551, 327–332 (2017)
❏ Arangona, M. et al. Nature 551, 306–307 (2017)