Da pesquisa ao tratamento: como são desenvolvidas terapias com células-tronco?

Da pesquisa ao tratamento: como são desenvolvidas terapias com células-tronco?

Pesquisa deve passar por diferentes fases antes que um tratamento com células-tronco possa estar disponível para a população. Como entender esse cenário?

Hoje pode parecer fácil ir até a farmácia e comprar um remédio como um antibiótico, por exemplo – mas você faz ideia da quantidade de pesquisa científica por trás de cada medicamento? Antes que um grupo possa lançar um novo tratamento, ele precisa fazer uma série de estudos que são, por sua vez, baseados no conhecimento atual acumulado sobre fisiologia e farmacologia. Com as terapias celulares em geral, incluindo terapias com células-tronco, é a mesma coisa. Só que, nesse caso, nosso conhecimento é mais recente e nós estamos em estágios mais iniciais da pesquisa.

Boa parte do conhecimento do qual depende a pesquisa clínica vem do que nós chamamos de ciência básica: na área da saúde, quando os cientistas estudam alguma coisa com a intenção de entender melhor o funcionamento normal e patológico do organismo, além de outros princípios científicos. Esse conhecimento é aceito pela comunidade científica conforme resultados semelhantes são replicados em diferentes laboratórios. Não há, necessariamente, um interesse dos pesquisadores em possíveis utilidades do conhecimento gerado e, até por isso, as suas aplicações podem ser bastante imprevisíveis.

Quando existe o objetivo de desenvolver um tratamento para uma determinada doença, um estágio fundamental para o processo é a pesquisa pré-clínica. Ela depende de resultados da pesquisa básica e utiliza modelos da doença para testar uma abordagem terapêutica – ou seja, o tratamento é testado, mas não em seres humanos: ele pode ser testado em animais e em tecidos ou células animais ou humanas. Sem que existam resultados promissores nesse estágio – que indiquem segurança e eficácia – não há base aceitável para desenvolver a fase seguinte, em seres humanos.

Mas por mais animadores que sejam resultados pré-clínicos positivos, eles são só o começo: em seguida vêm os ensaios clínicos, quando o tratamento começa a ser aplicado de forma experimental em seres humanos seguindo uma série de etapas e regras para garantir a segurança dos participantes e a confiabilidade das conclusões. Esses ensaios são divididos em fase I, II, III e IV. Ensaios de fase I começam a testar o tratamento em um número pequeno de pacientes para verificar a segurança e alguns parâmetros fisiológicos associados a ele; ensaios de fase II são um pouco maiores e, além de verificar a segurança, avaliam também, de forma preliminar, a eficácia; ensaios de fase III são ainda maiores: o tratamento é oferecido a um número maior de pessoas e o objetivo é verificar de maneira contundente a eficácia além de fazer um acompanhamento detalhado de efeitos da terapia; ensaios de fase IV, por fim, ocorrem depois que o tratamento já tenha sido aprovado para distribuição para a população para estudar efeitos em larga escala ao longo do tempo.

Além de serem aprovados por um Comitê de Ética independente, os ensaios clínicos precisam ser aprovados por uma agência reguladora governamental para que possam ser realizados (no caso do Brasil, essa agência é a ANVISA, nos Estados Unidos é a FDA, na União Europeia é a EMA). São essas agências, também, que aprovam os tratamentos para que eles possam ser comercializados. Receber uma terapia que ainda não tenha sido aprovada pela agência responsável e que não faça parte de um ensaio clínico aprovado pela agência reguladora pode ser muito arriscado (nós temos dois textos falando um pouco sobre isso aqui e aqui). Especialistas muito experientes em uma área terapêutica podem oferecer uma opção que enquadramos como inovação médica, mas esses casos são raros e deve haver uma sólida base científica além de cuidados éticos.

Até o momento, a única terapia com células-tronco aprovada e amplamente disponível para a população mundial é o transplante de células-tronco hematopoiéticas para algumas doenças sanguíneas. No Canadá e na Nova Zelândia foi aprovado o uso de uma terapia com células-tronco mesenquimais para tratar a doença enxerto-contra-hospedeiro em crianças que não estejam respondendo ao tratamento com esteroides (Prochymal) e, na Europa, foi aprovada uma terapia com uso autólogo de células-tronco da córnea (Holoclar) para alguns casos de queimadura ocular. Em um passo importante para o desenvolvimento de terapias celulares no Brasil, a ANVISA aprovou, em janeiro de 2018, uma resolução que dispõe sobre Boas Práticas em Células Humanas para uso terapêutico e em pesquisa clínica.

A maior parte das pesquisas que temos hoje com células-tronco se enquadram na classificação de pesquisa básica e de pesquisa pré-clínica. Resultados positivos nessas fases não implicam que o tratamento vá funcionar em humanos – e, de fato, muitas vezes os ensaios clínicos falham em demonstrar efeitos terapêuticos relevantes. No entanto, quanto melhor fundamentado em estudos de pesquisa básica e pré-clínica um ensaio clínico estiver, maiores as chances de sucesso. É um processo longo: na indústria farmacêutica tradicional, pode levar em média de 10 a 15 anos para um novo medicamento ser desenvolvido; quando falamos de terapias celulares fica ainda mais difícil fazer predições devido à complexidade dos mecanismos envolvidos e ao nosso estágio de conhecimento nesse ramo, que ainda é novo.

Nada disso é suficiente para diminuir o nosso otimismo quanto ao futuro das terapias com células-tronco: o número de estudos cresce a cada ano, cada vez mais descobertas são feitas e as agências regulatórias têm se esforçado para seguir o ritmo das pesquisas. Os desafios são muitos, mas as possibilidades de novos tratamentos são ainda mais numerosas

Referências:

ISSCR – A Closer Look at Stem Cells: How Science becomes Medicine

Nagpal A et al. Stem cell therapy clinical research: A regulatory conundrum for academia. Advanced Drug Delivery Reviews. 2017.

ANVISA – Aprovada regra para células humanas em uso terapêutico.

Trounson A et al. Stem Cell Therapies in Clinical Trials: Progress and Challenges. Cell Stem Cell. 2015.


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