A comercialização prematura de tratamentos com células-tronco e os princípios da bioética

A comercialização prematura de tratamentos com células-tronco e os princípios da bioética

Em diferentes lugares do mundo, tratamentos com células-tronco são comercializados sem aprovação das agências regulatórias e discutem-se (e aprova-se) projetos de lei que permitem a comercialização de tratamentos sem que eles tenham passado por todas as fases de pesquisa. Entre o rigor médico-científico e o direito de tentar dos pacientes, os princípios da bioética podem nos ajudar a tomar decisões?

Todas as áreas da medicina estão sujeitas a dilemas éticos envolvendo a disponibilização de novas terapias mas, sendo um campo que gera muitas expectativas e é fonte de esperança para muitos pacientes, que postura adotar em relação aos tratamentos com células-tronco tem sido tema de discussão em diferentes setores da sociedade.

Nós falamos aqui no blog recentemente sobre alguns modelos de regulamentação adotados por agências governamentais, sempre focando na necessidade de garantir a segurança e a eficácia dos tratamentos aprovados para comercialização e, ao mesmo tempo, de não colocar entraves excessivos no desenvolvimento de novas terapias. Mas existe também o outro lado: o de pacientes com doenças crônicas graves ou terminais, que estão dispostos a tentar novos tratamentos para os quais as agências reguladoras e a comunidade científica consideram que não há, ainda, comprovação suficiente.

Para o paciente, esperar que uma nova terapia passe por todas as etapas necessárias para registro e comercialização pode parecer desnecessário se ele está lidando com dificuldades diárias causadas por uma doença grave ou tem uma doença terminal que não lhe permite muito tempo de espera. Se existe uma possibilidade de tratamento, muitas vezes, ele quer ter o direito de tentar. Há, de fato, grupos de pacientes que se organizam para promover a disponibilização de novos tratamentos defendendo o “right to try” ou “direito de tentar”. Nos Estados Unidos, esse tipo de movimento teve resultados em muitos estados. Mais recentemente, o Texas aprovou uma lei que permite que tratamentos com células-tronco sejam comercializados sem aprovação da FDA, desde que atendam a algumas condições como já ter sido testados em algum ensaio clínico com seres humanos, tratar alguma doença grave ou terminal sem cura, e ter a supervisão de uma espécie de comitê de ética.

Essa lei aprovada no Texas é motivo de bastante polêmica e exemplifica bem a discussão social sobre a disponibilização de novos tratamentos. Sem esperar dar uma resposta definitiva para essa questão, vamos trazer princípios da bióetica que podem oferecer elementos para reflexão. Esses princípios são quatro:

  1. Respeito pela autonomia (respeitar as capacidades de tomada de decisão de pessoas autônomas);
  2. Não maleficência (evitar causar danos);
  3. Beneficência (trazer benefícios e equilibrar benefícios e riscos);
  4. Justiça (equidade na distribuição de benefícios e riscos).

O respeito pela autonomia significa, por exemplo, que as ações de um indivíduo autônomo não devem ser restringidas por outros. De acordo com essa interpretação, se uma pessoa quer se submeter a um determinado tratamento com células-tronco, por esse princípio da bioética ela não deveria ser impedida e é nisso que os grupos que advogam pelo “direito de tentar” estão fundamentados. Mas o princípio do respeito pela autonomia significa, também, que devem ser fornecidas informações que possibilitem uma tomada de decisão autônoma e que o entendimento dessas informações pelo indivíduo tem que ser garantido para que ele possa tomar uma decisão voluntária. De acordo com essa interpretação, uma pessoa que quer se submeter a um determinado tratamento com células-tronco precisaria entender bem os riscos e os possíveis benefícios envolvidos. Sabemos que, na maior parte das vezes, esse não é o caso. Terapias não aprovadas são vendidas a esses pacientes como tratamentos milagrosos, quando há pouca evidência de que eles sejam seguros e eficazes.

Isso nos leva aos princípios da não maleficência e da beneficência, que é o que as etapas de pesquisa que são necessárias para o registro de um tratamento procuram assegurar: que esse tratamento não vá causar danos, e que ele traga benefícios aos pacientes – ou que os possíveis benefícios superem significativamente o risco de algum dano.

O princípio da justiça, no caso do desenvolvimento de novas terapias, tem relação com o sistema de saúde adotado e o acesso dos pacientes aos tratamentos. De acordo com esse princípio podemos argumentar que não é justo, por exemplo, que uma determinada parcela da população participe de tratamentos experimentais, mas não tenha acesso aos tratamentos aprovados porque eles são muito caros. Nesse caso, essa parcela da população teria sido exposta a um risco maior, na fase em que a terapia ainda era experimental, mas não teria acesso ao benefício do tratamento comprovado. O princípio da justiça estabelece que todos os setores da população tenham a mesma oportunidade de participar de ensaios clínicos e, depois, de receber tratamentos aprovados.

Referências:

Servick, K. Texas has sanctioned unapproved stem cell therapies. Will it change anything? Science. 2017.

Islamoglu, R. History and Review for Bioethics and Biotechnology Related Bioethical Issues. 2012.


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