No último post da série sobre terapia gênica, explicamos o papel da combinação de células-tronco e terapia gênica para o futuro da medicina
Terapia celular e terapia gênica não são a mesma coisa – mas frequentemente andam juntas. A terapia celular envolve a administração de células inteiras, tipicamente células-tronco, para o tratamento ou cura de uma doença. Já a terapia gênica consiste na injeção apenas de material genético (DNA ou RNA) a fim de induzir, bloquear ou substituir um gene de interesse. Juntas, elas podem ser o tratamento definitivo para doenças atualmente incuráveis ou de difícil tratamento. Veja abaixo três exemplos do que células-tronco e terapia gênica podem fazer quando combinadas.
1. Correção genética em larga escala
Quando uma doença afeta simultaneamente bilhões (ou mesmo trilhões!) de células, modificá-las uma a uma pode ser impraticável. Nesses casos, a modificação genética de células-tronco pode ser preferível à modificação genética das células já diferenciadas, dada a grande capacidade de proliferação das células-tronco.
Essa abordagem é particularmente útil para um tipo de célula-tronco que nós mantemos por toda a vida: as células-tronco hematopoiéticas. Essas células-tronco se localizam na medula óssea e são as responsáveis por estarmos continuamente gerando novas células imunes e do sangue. Em pacientes com certas doenças sanguíneas (como a anemia falciforme) ou do sistema imunológico (como a doença do “menino da bolha”) essas células-tronco hematopoiéticas possuem uma mutação, o que faz com que as células diferenciadas do sangue ou do sistema imune fiquem comprometidas. Nesse caso, o tratamento mais eficiente não é tratar as células sanguíneas ou imunes uma a uma, mas substituir as células-tronco hematopoiéticas, já que elas são a fonte das quais as células imunes e sanguíneas diferenciadas se originam. Para isso, estuda-se uma combinação de células-tronco e terapia gênica que envolve extrair as células-tronco hematopoiéticas do paciente e corrigi-las em laboratório usando terapia gênica. Em seguida, essas células-tronco corrigidas são reinjetadas no paciente, onde vão seguir se multiplicando, saudáveis. Essa opção está sendo investigada para diferentes formas de imunodeficiência combinada grave.
2. Turbinando a reparação tecidual
Outra vantagem das células-tronco é sua capacidade de reparação tecidual. São as células-tronco que mantém nossa pele continuamente se renovando, e que regeneram nossos ossos após uma fratura. Mas a capacidade de regeneração das células-tronco no nosso corpo pode ser prejudicada por certas doenças, ou pelo próprio envelhecimento. Nesse caso, células-tronco podem se beneficiar de modificações genéticas que as tornem mais resistentes aos danos causados por lesões e doenças degenerativas.
A doença de Parkinson, por exemplo, é caracterizada pela perda progressiva e irreversível de neurônios dopaminérgicos. Em teoria, essa doença poderia ser tratada com o transplante de células-tronco neurais saudáveis para o cérebro do paciente, onde elas se diferenciariam em novos neurônios dopaminérgicos para substituir os que morreram. Infelizmente, ensaios clínicos têm mostrado que essas novas células também podem morrer rapidamente. Para evitar que isso aconteça, cientistas estudam uma combinação de células-tronco e terapia gênica que torne as células mais resistentes à degeneração. Em um estudo recente, células-tronco mesenquimais foram geneticamente modificadas para expressar uma proteína que protege contra diversos insultos químicos típicos do cérebro de um paciente com a doença de Parkinson. Como resultado, essas células foram capazes de se diferenciar em neurônios dopaminérgicos mais resilientes, com mais chances de sobreviver após o transplante – pelo menos em laboratório.
3. Delivery de medicamentos
Não se sabe a razão, mas células-tronco neurais são atraídas por certas proteínas liberadas por tumores. Por isso, após injetadas no corpo, elas tendem automaticamente a migrar para regiões tumorais. É possível tirar vantagem dessa característica para melhorar o tratamento de cânceres que são difíceis de tratar. Drogas antitumorais podem ser eficazes, mas tendem a ser extremamente tóxicas se administradas sistemicamente. A solução pode ser empregar células-tronco como veículos para a entrega de medicamentos apenas na vizinhança do tumor.
Uma maneira de fazer isso foi testada no tratamento de glioblastoma, a forma mais agressiva de câncer cerebral. O tratamento convencional para glioblastoma envolve o uso de 5-fluorouracil, uma medicação eficaz contra o tumor, porém extremamente tóxica para todas as outras células. Para contornar esse problema, os pesquisadores tentaram um método diferente: eles administraram a pró-droga 5-fluorocitosina aos pacientes, que não é tóxica. Em seguida, eles injetaram milhões de células-tronco geneticamente modificadas para produzir uma enzima capaz de converter a 5-fluorocitosina em 5-fluorouracil. Como essas células tendem a migrar para o tumor, a conversão da pró-droga tolerável em medicamento tóxico vai acontecer principalmente na região do tumor. Como consequência, a maior concentração da medicação vai ser na região onde ela é mais necessária, poupando as demais células saudáveis. Os primeiros resultados dos testes humanos mostram que o método é seguro e que as células-tronco efetivamente migram para o tumor, onde produzem a quimioterapia localmente.
Para saber mais sobre terapia gênica no mundo e no Brasil confira também os dois primeiros posts dessa série.
Fontes:
❏ Asahara T et al. Stem cell therapy and gene transfer for regeneration. Gene Therapy (2000) 7, 451–457 (2000)
❏ Aiuti A et al. Correction of ADA-SCID by Stem Cell Gene Therapy Combined with Nonmyeloablative Conditioning. Science, Vol. 296, Issue 5577, pp. 2410-2413 (2012)
❏ Bonilla-Porras AR et al. PARKIN overexpression in human mesenchymal stromal cells from Wharton’s jelly suppresses 6-hydroxydopamine-induced apoptosis: Potential therapeutic strategy in Parkinson’s disease. Cytotherapy. 2017 Oct 24. pii: S1465-3249(17)30710-7.
❏ Portnow J. Neural Stem Cell-Based Anticancer Gene Therapy: A First-in-Human Study in Recurrent High-Grade Glioma Patients. Clin Cancer Res. 2017 Jun 15;(12): 2951-2960.