Terapia com células-tronco para tratar lesão espinhal é aprovada no Japão e recebe muitas críticas

Terapia com células-tronco para tratar lesão espinhal é aprovada no Japão e recebe muitas críticas

Usar células-tronco da medula óssea do próprio organismo para tratar lesão espinhal: uma
solução inovadora para um dos maiores desafios da medicina, se funcionar. Mas o que é necessário
para produzir e comercializar um tratamento como esse com segurança e eficácia comprovadas? De
acordo com o governo japonês, basta um ensaio clínico com 13 pacientes, sem grupo controle. A
comunidade científica não gostou muito dessa história.

Células-tronco são intensamente estudadas para tratar lesão espinhal e tudo indica que elas podem, de fato, ter um efeito terapêutico positivo. Esse é, inclusive, um dos assuntos mais abordados aqui no Tudo Sobre Células-Tronco: já discutimos recentes avanços e desafios, estudos pré-clínicos com bons resultados em roedores, cães e macacos, e até questões metodológicas.

Terapias com células-tronco em que há manipulação extensa das células (como multiplicação em meio de cultura) e∕ou em que as células são usadas para desempenhar uma função diferente da que desempenham originalmente no organismo são consideradas produtos que precisam ser aprovados por autoridades reguladoras antes de poderem ser comercializados. Normalmente, é necessário cumprir certas etapas de pesquisa e ter resultados robustos indicando segurança e eficácia antes de comercializar um novo produto para tratamento.

Esse processo pode ser demorado e existe uma tendência mundial de tentar acelerar a disponibilização de terapias inovadoras por meio de mecanismos regulatórios específicos. A designação RMAT (Regenerative Medicine Advanced Therapy – Terapia Avançada de Medicina Regenerativa, em tradução livre), por exemplo, é uma maneira usada pela agência reguladora americana, FDA, para facilitar a aprovação de ensaios clínicos na área de medicina regenerativa. O Japão foi além: o país tem um sistema de aprovação condicional para produtos de medicina regenerativa, em que é possível começar a comercializar um tratamento sem necessidade de realizar todas as fases de ensaios clínicos tradicionais. Essa aprovação é dada por sete anos, período ao longo do qual é necessário coletar dados sobre os efeitos do tratamento, que serão analisados para decidir sobre a aprovação definitiva.

Esses mecanismos de aceleração regulatória para terapias em medicina regenerativa têm sido observados e discutidos, tanto pelos riscos que envolvem como pelos benefícios. O modelo adotado pelo Japão, particularmente, causa bastante polêmica. A aprovação, em meados de 2018, do uso de células-tronco para tratar insuficiência cardíaca já havia recebido algumas críticas mas, agora, a aprovação mais recente de um tratamento com células-tronco para lesão espinhal teve péssima repercussão na comunidade científica. A prestigiada revista Nature publicou um editorial e uma reportagem apontando muitos problemas na decisão japonesa. Dos dez especialistas contatados pela revista, nenhum foi favorável à comercialização dessa terapia a partir das evidências apresentadas. O cientista Paul Knoepfler, nomeado uma das 50 pessoas mais influentes no campo de células-tronco, considera essa a aprovação mais controversa de um tratamento com células-tronco até o momento e um passo atrás para a medicina regenerativa.

O tratamento chama-se Stemirac, foi desenvolvido pela Universidade de Medicina Sapporo em conjunto com a empresa Nipro e consiste no uso de células-tronco mesenquimais da medula óssea. Ele é indicado para pacientes que tenham sofrido lesão espinhal até duas semanas antes do início do tratamento. As células-tronco são extraídas da medula óssea, cultivadas em laboratório até atingir entre 50 e 200 milhões de células e, então, são injetadas no sistema circulatório. De acordo com os pesquisadores envolvidos no projeto, essas células reduzem a inflamação, liberam substâncias que promovem a regeneração do tecido e podem até se diferenciar em células nervosas.

Outros cientistas, no entanto, permanecem céticos e apontam vários problemas no desenho do estudo e nos mecanismos de ação defendidos pelo grupo.

O ensaio clínico é considerado muito pequeno – apenas 13 participantes, levando-se em conta que não se trata de uma doença rara, é muito pouco. Mais grave até do que isso, o estudo não tinha um grupo controle. Sem um parâmetro adequado de comparação para a terapia é impossível avaliar objetivamente a sua segurança e eficácia. Seis meses após o tratamento, 12 dos 13 pacientes apresentaram melhora na escala de movimento e sensibilidade, mas eles foram submetidos também a sessões de fisioterapia. Além disso, existe um período após a lesão dentro do qual é possível uma recuperação por processos fisiológicos sem a intervenção com células-tronco. Dessa forma, sem o grupo controle não dá para saber se esses pacientes que apresentaram uma melhora teriam melhorado de qualquer forma, mesmo sem o tratamento. É difícil justificar a ausência de um grupo controle no caso de uma intervenção relativamente pouco invasiva para uma condição que não é letal.

Cientistas consultados pela revista Nature também argumentam que células-tronco injetadas no sangue tendem a formar coágulos no pulmão e, nesse caso, não poderiam ter efeitos sobre a lesão espinhal. Outro problema apontado é a hipótese de que essas células poderiam se diferenciar em células nervosas no local da lesão, considerada altamente improvável.

Se, por um lado, a aceleração regulatória para produtos de medicina regenerativa pode facilitar o acesso da população a tratamentos inovadores, por outro, pode levar à comercialização de produtos sem evidências suficientes de segurança e eficácia. De qualquer forma, agora a Nipro pode comercializar essa terapia no Japão e o mundo é convidado a avaliar os critérios para a disponibilização de novos produtos de medicina regenerativa.


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